A criança na carroça


 

Esse causo era contado por minha tia, que atualmente já se encontra do outro lado da existência, criando suas próprias histórias de assombração.

No início do século XX, meu avô - pai da minha tia - tinha um armazém de secos e molhados no atual bairro Alto Petrópolis, em Porto Alegre. O armazém ficava na parte mais alta de uma grande subida e era ponto de parada dos carreteiros que transportavam mercadorias para os lados da Chácara das Pedras e até para as bandas do Passo do Sabão, já em terras do Arraial de Viamão.

Naquela época era comum que o mesmo prédio abrigasse o comércio e a residência do comerciante. Também não havia creches e a frequência na escola não era obrigatória, de modo que meus tios e tias foram alfabetizados em casa. Por tudo isso era normal que estivessem sempre juntos, brincando entre as prateleiras.

Certo dia um dos tantos carreteiros que costumavam parar por ali para dar uma folga aos animais - e molhar a goela com um trago de água que passarinho não bebe - entrou, saudou os presentes e tirou o chapéu de aba larga para enxugar o suor da testa.

Essa minha tia que me contou o causo era a mais velha e a comandante em chefe de uma escadinha de sete irmãos - infelizmente nenhum lobisomem, mas a mais peralta era a segunda na linha de comando.

Enquanto os adultos colocavam a conversa em dia, o bando foi em direção a carroça para dar água e pasto aos animais e, curiosas como todas as crianças, averiguar o que estava sendo transportado.

Passado algum tempo, essa minha outra tia - a sapeca - entra no estabelecimento e vai direto puxar o avental do pai para chamar sua atenção.

— Me dá umas balinhas? - diz ela com aquele ar pidão que sabia ser infalível.

— Depois - responde o pai - agora estou conversando.

— Mas não é para mim - retruca ela e emenda em seguida:

— É para aquela criança - diz apontando o dedinho em direção à rua.

— Que criança? - pergunta o pai.

— Aquela que está sentada no caixote da carroça!

Nesse momento o carreteiro suspende o gole e arregala os olhos.

— Não vejo criança alguma na carroça - diz o pai espichando o olhar.

Ato contínuo, vai até o balcão, mete a mão num baleiro de vidro e diz para a filha:

— Pega essas balinhas e te some daqui. E não esquece de dividir com teus irmãos!

A todas essas o cocheiro continuava imóvel, de costas para a porta e com os olhos baixos, como se evitasse olhar para fora. De seus lábios subia um murmúrio indistinto, talvez uma oração. 

Meu avô, alheio a aflição do outro, esfregava o balcão com um pano. Para quebrar aquele silêncio constrangido que se instalara após a saída da menina, pergunta mecanicamente:

— O que estás levando na carroça hoje?

O condutor levanta os olhos sem mexer a cabeça e responde num quase sussurro:

— É o caixãozinho de uma criança que morreu de tifo na Santa Casa.

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