O Dia em que D. Cissa comprou um celular


Seu nome é Cecília, mas todos a conhecem por D. Cissa, uma senhorinha faceira que finalmente vai realizar um sonho há muito acalentado: comprar um celular.

Quem a vê a caminho da loja com seu vestidinho florido, unhas feitas e um sorriso nos lábios nem desconfia o que essa mulher passou na vida. Filha única de um prestigiado comerciante carioca, conhecido pelo rigor com que controlava a família e pela liberalidade demonstrada com as moças de vida fácil, desde cedo descobriu o significado da palavra submissão. Não que tivesse plena consciência de sua situação, visto que o contato com o mundo exterior era ostensivamente vigiado pela mãe e pelas criadas que serviam na casa.

Ao atingir a mocidade os cuidados paternos foram redobrados e ela sentia-se cada vez mais sufocada pela clausura na qual era obrigada a viver. Talvez influenciada pelas fotonovelas que surrupiava no consultório do ortodontista ou pelas conversas frívolas com as colegas de classe, Cecília passou a acreditar que o casamento seria o único meio de libertar-se do jugo paterno. A partir dessa constatação, começou a investir nos seus dotes femininos na ânsia de chamar a atenção de algum príncipe encantado que a tirasse da torre do castelo onde se encontrava aprisionada. Diga-se de passagem que não era feia, mas também dificilmente venceria um concurso de beleza. Até porque carecia de traquejo social devido a falta de prática.

Atenta a essas iniciativas da filha, a mãe tratou de alertar o marido de que era melhor eles providenciarem  um noivo antes que a mancha da desonra conspurcasse o nome da família.

Obviamente, ao fazer a escolha entre os pretendentes disponíveis, o casal deu preferência ao patrimônio e ao prestígio dos candidatos em detrimento de valores como caráter e afeição pela menina. E foi assim que Cecília passou do controle do pai ao do marido e tornou-se - inicialmente - D. Cecília e - finalmente - D. Cissa.

Na lua de mel teve uma noção do que a aguardava na vida de casada. Seu marido a deixou no leito nupcial e retornou somente na manhã seguinte, completamente bêbado e carregado por dois garçons.

Episódios como esse logo se converteram em rotina. Sempre que ela, chorosa, se queixava e pedia que mudasse, ele respondia que a amava como ela era e a recíproca deveria ser verdadeira. E se a mantinha trancada em casa, proibida de manter contato com quem quer que fosse, era por medo de perdê-la.

D. Cissa nunca contou a alguém, mas o ciúme doentio do marido o levava a cometer atos de violência por detalhes insignificantes. Na maioria das vezes, ela nem sabia dizer o que poderia ter ocasionado o ataque de fúria.

A casa onde morava era grande e confortável. E solitária. Tristemente solitária. Suas companhias habituais eram a televisão, duas ou três vizinhas que a visitavam esporadicamente para beber chá e falar sobre amenidades. Havia também a funcionária que a ajudava nos trabalhos domésticos - e a vigiava secretamente a mando do marido.

No gabinete, onde seu esposo passava horas a fio trancado, havia um telefone fixo antigo, com dial de disco. Os mais jovens talvez não conheçam, mas é daqueles em que a discagem é feita com o dedo, girando o mostrador. O motivo? Esse tipo de aparelho pode ser bloqueado com um cadeado. Uma forma simples de garantir que D. Cissa não pudesse fazer ligações sem prévia autorização.

E por falar em telefone, foi numa edição do noticiário nacional que ela ficou sabendo do lançamento da telefonia celular. A princípio não entendeu bem do que se tratava - e o marido não se dignou a explicar. Com o passar do tempo foi coletando informações aqui e acolá e chegou a conclusão que seria maravilhoso poder ter um desses para falar com outras pessoas.

O tempo foi passando, a tecnologia evoluiu de analógica para digital, surgiu o 4G e o marido de D. Cissa continuava o mesmo. Quer dizer, quase o mesmo, porque o cigarro, a bebida, a vida desregrada que levava fora de casa e, é claro, a idade, começaram a cobrar seu preço.

Foi num final de tarde. Não há como D. Cissa esquecer. O marido não acordara muito bem e decidira ficar em casa. Comera pouco no almoço. Sentia-se pesado, tonto. Ao cruzar a sala em direção ao banheiro olhou para ela - que estava sentada em sua poltrona fazendo crochê - e falou com voz pastosa:

— Xixa, eu ...

E desabou sobre o tapete, vítima de um Acidente Vascular Cerebral, o popular derrame.

Estavam sozinhos em casa, pois a funcionária se retirara às cinco horas, como de costume. Prostrado e babando, ele a encarava com um olhar que mesclava súplica e impotência.

Ao dar entrada na emergência os médicos constataram o óbito. Nada mais havia a fazer e, compungida, D. Cissa autorizou a doação dos órgãos que estivessem em condições de serem transplantados.

— O fígado com certeza não - pensou zombeteiramente.

Durante o velório ela ficou sentadinha num canto, sem tirar os olhos do caixão onde o marido, agora defunto, aguardava o translado para sua última morada. Quem a viu tão compenetrada julgou que o silêncio era fruto da perda. Na verdade, ela velava para ter certeza de que ele estava definitivamente morto. Pela primeira vez na vida D. Cissa não tinha alguém para lhe dizer o que devia ou não fazer.

A capela estava cheia e, como é natural, o povo comentava a sorte do falecido. Alguns, maldosamente, chamavam a atenção para a demora em ligar para a emergência pedindo socorro por parte da viúva. Teria sido proposital?

Ao ser interrogada a esse respeito pelos médicos, D. Cissa explicou que a demora se dera por culpa do próprio marido.

— Ele mantinha o telefone chaveado e até agora eu não sei onde ele escondeu a chave. Tive que pedir ajuda à vizinha!

Uma lágrima furtiva escorreu por sua face, comovendo o corpo médico. E arrematou com seu olhar de basset abandonado:

— Se eu tivesse um celular naquele momento ele ainda estaria vivo.

E assou o nariz com vontade. Quem em sã consciência poderia culpar aquela senhorinha fragilizada, imersa em tamanha dor?

Voltando ao início, D. Cissa ia a uma loja realizar seu grande sonho - que se convertera num símbolo da liberdade recém conquistada. Teve sorte de ser atendida por um vendedor muito atencioso que, pacientemente, lhe explicou as diferenças entre os marcas, as funcionalidades de cada modelo e, por fim, sugeriu que ela adquirisse um básico, para ir aprendendo. Futuramente, se fosse o caso, poderia adquirir outro, mais sofisticado.

Realizados os trâmites de compra, pagamento, nota fiscal, etc. D. Cissa perguntou ao vendedor se ele faria a gentileza de preparar o celular para ela. Estava na cara que ela não saberia fazê-lo sozinha e o rapaz decidiu então atender o pedido daquela cliente que tinha idade para ser sua avó.

Ao concluir os procedimentos, quando ia entregar para a dona, sentiu o aparelho vibrar e olhou instintivamente para a tela.

— Que estranho. A senhora recebeu uma mensagem.

— Não é possível. Ninguém tem meu número. E o que é?

— Aqui diz ... "Eu SEMPRE estarei ao seu lado. Com amor, Norberto".

Ao ouvir isso D. Cissa tremeu da cabeça aos pés. Norberto é o nome do seu falecido marido.

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