Andarilhos


Após lerem o causo da Visagem Noturna (clique aqui para ver) alguns leitores assíduos do blog enviaram  relatos de suas experiências com esse tipo de entidade a quem chamamos Andarilhos por sua característica de estarem sempre de passagem. Aliás, chamou a atenção a semelhança de alguns desses encontros, de modo que sintetizamos todos em três causos. Como sempre, os nomes foram alterados para preservar a privacidade dos envolvidos. 

Se você quiser ver sua história aqui no Memento Mori é só mandar para nós!


Na estrada

Na época em que ainda eram noivos, Anderson e Fernanda decidiram aproveitar o  fim de semana para visitar uma tia dela que morava em Ipiabas, um distrito de Barra do Piraí, no interior do Rio de Janeiro, que até hoje é um destino turístico cujo principal atrativo é a tranquilidade. No sábado a noite, como não havia muitas opções de lazer por ali, os dois resolveram ir até a sede do munícipio para dar uma volta e jantar a sós. Pegaram o carro e partiram para um passeio que prometia ser pura diversão. Ledo engano.

A estrada era um breu só, pois não havia lua nem iluminação. Ao passarem por um trecho ermo o carro começou a falhar. Rodou ainda algumas centenas de metros e parou completamente. Os faróis piscaram e se apagaram. A pane no sistema elétrico era total. A única fonte de luz disponível naquele momento eram as estrelas do céu.

O casal ficou apreensivo e indeciso por alguns instantes, até que Anderson decidiu sair em busca de ajuda, apesar dos protestos de Fernanda, que não queria ficar sozinha no meio do nada.

Passados uns dez minutos da saída de Anderson, Fernanda, que havia se trancado dentro do carro, percebeu uma movimentação a distância. Apesar da escuridão conseguiu distinguir a silhueta de alguém que se aproximava caminhando. Por um momento ela ficou aliviada com a certeza que seria o noivo que retornava, quiçá com boas notícias. Mas não podia ser ele. Uma luminosidade difusa envolvia essa pessoa, permitindo ver que se tratava de alguém mais magro e alto que Anderson. Apreensiva, Fernanda redobrou a atenção, tentando identificar quem vinha chegando.

Quando ele estava perto o bastante, Fernanda pode ver que era um homem com cabelos longos e barba por fazer. Parecia um mendigo, ou andarilho. Vestia calça surrada, com a bainha dobrada como fazem os pescadores ao entrar na água. Sua camisa era branca e estava aberta no peito. Aparentava ter uns quarenta anos. Era atlético e seu semblante sereno. Uma névoa  baixa, que ia do chão até a altura dos joelhos, o envolvia. Era dela que emanava a luminosidade que alertou Fernanda inicialmente.

Caminhava sem pressa ou esforço. Na verdade, parecia flutuar sobre a estrada de chão batido. Ao se dar conta desse detalhe, Fernanda também percebeu que o corpo dele não era sólido, pois ela podia ver através dele. Ao passar pelo carro olhou intensamente para ela, mas não parou ou esboçou qualquer reação. Seguiu serenamente seu caminho, fosse ele qual fosse.

Um pouco assustada, Fernanda olhou pelo espelho retrovisor em busca do andarilho e viu somente o vazio da noite.

Passados alguns minutos as luzes do carro voltaram a funcionar. Fernanda tomou o volante e ia partir em busca do noivo quando o viu entrando na área iluminada pelos faróis. Tinha o semblante preocupado. Assim que entrou se jogou no assento, deu um longo suspiro e disse com voz trêmula:

— Lembras da curva das cruzes, aquela que fica depois da fazenda?

Anderson estava se referindo a uma das tantas curvas que tornam essa estrada particularmente perigosa. Essa ficava num ponto em que a estrada contornava um morro e fora preciso cortar o terreno, deixando uma parte mais elevada de um lado e um barranco com uns cinco metros de altura do outro. Uma cerca de madeira fora posta para evitar a queda de veículos que saíssem da pista. A quantidade de cruzes fincadas no local, lembranças de entes queridos ali falecidos, atestava a periculosidade daquele trecho, bem como a ineficácia da sinalização.

— Sim. O que tem ela?

Anderson continuou falando sem olhar para Fernanda.

— Houve um deslizamento de terra que bloqueou a passagem. E tem um buraco na cerca. É possível que alguém tenha despencado no barranco. Se o carro não tivesse pifado aqui é bem provável que tivéssemos o mesmo destino.

A distância do ponto onde estavam até a curva a qual Anderson se referira era considerável, por isso Fernanda estranhou a rapidez com que o noivo fora e voltara. Ia perguntar algo a respeito, mas desistiu ao ver o quanto ele estava abalado.

Não tendo como seguir em frente decidiram voltar a casa da tia e de lá avisar as autoridades sobre o acontecido, contudo isso não foi necessário. No caminho passaram por eles uma ambulância, carros de bombeiros e várias viaturas da polícia rodoviária. No dia seguinte correu a notícia de um grave acidente ocorrido naquela curva. No carro semi-soterrado encontraram o corpo do motorista ainda agarrado ao volante.

Fernanda nunca falou com Anderson sobre a visão que tivera enquanto aguardava por ele. Até que um dia, passados alguns anos, foram a uma festa na casa de amigos comuns ao casal. Lá pelas tantas alguém contou uma estória que envolvia eventos sobrenaturais e cada convidado foi fazendo seu relato sobre acontecimentos inexplicáveis.

Fernanda então relatou o que se passara naquela estranha noite na estrada de Ipiabas. Falou sobre o andarilho noturno e do carro acidentado na curva que havia caído pelo barranco. Nesse momento Anderson olhou espantado para ela e disse:

— Você também o viu? Achei que somente eu havia visto aquela criatura! Eu nem cheguei perto do local do acidente. Foi ele quem me alertou do perigo e me fez dar meia volta.


O mendigo e a menina

Há quem acredite que memórias de vidas passadas permaneçam gravadas na alma para todo o sempre, inclusive - e principalmente - lembranças do amor verdadeiro.

* * *

Lys era uma bela moça no frescor dos seus 15 anos. Apesar do porte de mulher, no íntimo ainda guardava resquícios da inocência da infância. Talvez por isso não encarasse com maldade os olhares pidões que provocava na rapaziada quando desfilava pelas ruas do bairro onde morava.

Seu pai, ao contrário, estava muito atento ao desabrochar da filha e já cogitava o que fazer para espantar os gaviões que rondavam o seu terreiro. Para piorar, Lys decidira se inscrever num curso de datilografia. O problema é que as aulas começavam depois do colégio e iam até as oito e meia da noite. O instituto onde aprendia a "bater a máquina" era afastado e ela precisava pegar um ônibus que a deixava no ponto onde deveria descer por volta das nove. Preocupado com a segurança da filha,  o pai não permitia que ela andasse sozinha dali até a casa.

Assim Seu Elói, o pai de Lys, ia todas as segundas, terças e quintas-feiras buscar a menina na esquina de uma movimentada avenida que ficava a três quadras da rua onde moravam. Longe de ser um trabalho, para ele era uma satisfação passar algum tempo com a filha que estava crescendo tão rápido e, certamente, em pouco tempo estaria casada e cuidando da própria vida.

O inverno ainda estava um pouco longe, mas naquela ocasião a noite estava gelada, obrigando a dupla a caminhar mais rápido e com as mãos nos bolsos para escapar da friagem. Lys comentava com o pai sobre a dificuldade de mover os dedos no teclado da máquina de escrever quando este colocou a mão em seu braço e a deteve. Vinha em direção a eles um desconhecido. Seu aspecto era de quem vivia na rua. Cabelos longos e desgrenhados, barbudo, aspecto desleixado. Apesar do frio, vestia somente uma camisa branca com os botões abertos na altura do peito e uma calça escura que já vira melhores dias. Estava descalço. Lys podia jurar que ele avançava sem mover os pés, porém isso seria loucura.

Trazia algo na mão direita. Ao passar sob uma luminária Lys percebeu que se tratava de uma flor. Uma rosa muito branca, tão fresca quanto se tivesse sido colhida naquele instante. Quando estava a um passo dos dois se deteve, esticou o braço em direção a menina e disse quase com alegria:

— Toma. É pra você.

Um pouco assustada Lys balançou negativamente a cabeça, recusando a oferta. Foi quando ela encarou o rapaz de perto e sentiu um calafrio medonho. Ela conhecia aquele olhar porque lembrou de já ter sido vista por aqueles olhos límpidos, capazes de penetrar no âmago de sua alma. Apenas não sabia onde ou em que tempo. Perturbada por um sentimento que não conseguia definir, Lys baixou os olhos e corou violentamente, espantando qualquer resquício de frio que pudesse vir a sentir.

Nesse meio tempo o jovem permanecia impassível a sua frente, a rosa estendida em direção a ela. Em total desamparo pela recusa, ele parecia um menino abandonado que buscava chamar sua atenção.

Alheio a esses acontecimentos de foro íntimo, Seu Elói puxou a filha para o lado e foram adiante, deixando para trás o olhar consternado daquele mendigo esquisito. Era uma rua comprida, bem iluminada. Mesmo assim, ao se virar procurando por ele, Lys não pode mais encontrá-lo.

— Pra onde ele foi pai? Não tem como se esconder por aqui!

Lys, atônita, procurava algum vestígio do desaparecido nas sombras dos muros.

— Não sei minha filha. O importante é que ele se foi.

Ao chegarem na próxima esquina encontraram um despacho com doze rosas brancas cuidadosamente arranjadas. Já estavam um pouco murchas, mesmo assim continuavam sendo muito bonitas.

Lys contou mentalmente a quantidade de flores ali depositadas e deixou escapar a sua surpresa:

— Que estranho. Pensei que ele poderia ter pego a flor aqui...

Logo em seguida comparou em silêncio a flor a ela oferecida com aquelas a sua frente. Definitivamente a do mendigo viera de outro ramalhete.

— Nem sei se aquilo era gente minha filha. Ainda bem que não aceitastes o presente. Já imaginou o que poderia ter acontecido?

Olharam para os dois lados e atravessaram a rua cheios de cuidados para não pisarem na oferenda. Lys ainda deu uma olhadinha rápida tentando encontrar o dono daqueles olhos que a enxergaram de forma tão profunda e perturbadora. Um olhar que atravessara sua alma e despertara lembranças que nem ela sabia que tinha. Lembranças de um amor que atravessava a eternidade e ao qual ela estava destinada. Mas não agora. Não nessa vida.


Passagem para lugar algum

O que vou contar agora aconteceu há décadas. Eu era jovem na época e conhecia pouco da vida e seus mistérios. Se fosse hoje certamente teria agido diferente e se escrevo esse relato é para servir de aviso, mesmo que ninguém acredite.

Como dizia, eu era muito jovem e gostava de viajar. Havia dado baixa do serviço militar há alguns meses e minha primeira providência foi deixar a barba e o cabelo crescerem. O visual hippie era reforçado por roupas extravagantes e uma mochila de lona verde-oliva. As garotas gostavam e eu não me queixava por isso. Com o dinheiro economizado no último ano comprara um fusquinha valente que se tornou o meu companheiro de aventuras e com ele rodava pelo interior do Rio Grande do Sul, montando acampamento onde fosse bem recebido.

O fato aconteceu numa das cidades que ficam as margens da Lagoa dos Patos. Talvez tenha sido em Arambaré, mas acho que foi mesmo em Barra do Ribeiro. Chegamos depois do meio-dia de uma sexta-feira - eu e Alice, minha namorada - para aproveitarmos um final de semana prolongado. Instalamos a barraca no camping municipal e eu aluguei duas bicicletas num quiosque ali perto.

Saímos em direção à cidade - o camping fica no balneário, um pouco afastado do núcleo urbano - em busca de um lugar onde pudéssemos almoçar. Não sei se ainda é assim e espero que não, mas como já passava das duas horas todos os restaurantes que encontramos estavam fechados! Pedalamos mais um pouco até avistarmos três senhores que conversavam ao pé de uma laranjeira. A explicação de um deles foi ótima:

— Aqui a gente almoça em casa. Quem fica na rua até tarde é vagabundo!

Depois dessa fomos em frente até encontrarmos uma senhorinha que se protegia do sol com os ramos de um arbusto, como se fosse uma sombrinha.

— Olha meu filho, a essa hora acho que só a lancheria da rodoviária tá aberta.

Agradecemos e seguimos para lá, onde demos cabo de alguns mata-fome típicos da região. Até aí nada de mais. Entretanto, para sair do prédio era preciso passar pelo setor de vendas de passagens. Havia bem umas dez pessoas no recinto, fora eu e minha namorada. O curioso é que havia um senhor pobremente vestido que gesticulava muito sem que alguém lhe desse atenção. Ele tentava mostrar algo que trazia nas mãos, provavelmente dinheiro, aos presentes, mas ninguém olhava. Fazia isso em total silêncio. Estava a centímetros do bilheteiro que permanecia impassível. A julgar pelos gestos que fazia, entendi que tentava comprar uma passagem e era totalmente ignorado por todos.

A aparência desse senhor era tão singular que merece ser descrita. Ele era negro, bem velhinho, com a carapinha e a barba rala totalmente brancas. Usava calça e camiseta de algodão grosseiro, impecavelmente limpas e estava descalço. Seus pés tinham a sola grossa, de quem está acostumado a caminhar longas distâncias.

Estava a ponto de perguntar se ele precisava de ajuda quando Alice me puxou pelo braço e disse:

— Vamos?!

Tentei explicar que aquele senhor estava com dificuldades de se expressar e ela me cortou como uma navalha:

— Qual senhor?

Olhei para o balcão e o velhinho havia sumido. Aparentemente apenas eu tomara conhecimento de sua presença naquele lugar.

Apesar da experiência insólita na rodoviária o final de semana foi ótimo, todavia precisávamos voltar no domingo a tarde.

O acesso à rodovia principal não era asfaltado e seguíamos devagar, um pouco pela buraqueira, outro tanto pela paisagem. O sol começava a declinar no horizonte e  prenunciava um belo entardecer de outono.

Ao me aproximar de uma curva mais fechada vi que havia um casebre com telhado de sapê no barranco ao lado da estrada.

— Que estranho - comentei com Alice - não havia percebido essa casinhola na vinda.

Ela olhou distraidamente e não respondeu.

Ao chegar mais perto vi nítida e claramente aquele velho senhor, vestido com as mesmas roupas, sentado em um banco de madeira, tomando chimarrão!

Parei o carro bruscamente no acostamento e sai apressado, deixando minha companheira falando sozinha.

Subi rapidamente o barranco a procura da casa e do mateador, mas nada havia lá. Estava deserto.

Voltei para o carro e para o mau humor de Alice.

— O que deu em ti pra parar desse jeito e sair correndo?

Por estar um pouco desacorçoado nem tentei explicar o que havia visto. 

— Vontade de fazer xixi ...

Engatei a primeira e arranquei. Até hoje busco uma explicação para esse fenômeno. A hipótese mais provável, na qual prefiro acreditar, é que aquela entidade - só podia ser um ser do outro mundo - queria voltar ao seu rincão e como só eu consegui enxergá-lo na rodoviária ele quis me mostrar que havia conseguido e estava bem. 

Por duas ou três vezes tentei convencer Alice que essa estória é real, mas foi inútil. Então, troquei de namorada.

Comentários

Postar um comentário

Por favor, seja gentil!

Postagens mais visitadas deste blog

Recém-casados

Não corra papai

Prematuro