Post Mortem
Talvez as gerações mais novas não saibam - ou apenas achem estranho, mas houve um tempo em que as pessoas não tinham celular.
Jogos como damas e xadrez tinham que ser jogados em tabuleiros e as peças movidas pelos jogadores. Já paciência e "freecell" necessitavam de baralhos e uma mesa. Era tudo analógico. Como também não havia aplicativos de mensagens, era costume as pessoas falarem entre si por telefone fixo. Daí a importância de ter, e manter sempre atualizado, um caderninho - também conhecido como agenda - com o nome e o número de seus contatos mais importantes.
Por tudo isso era normal, naquela época, que as alunas de um tradicional colégio feminino do Rio de Janeiro se reunissem durante o recreio para conversar e comparar seus cadernos com os das amigas. Quanto maior o número de registros, mais popular era a dona do mesmo.
Andréia e Fabíola não fugiam a esse padrão. Amigas de longa data, zanzavam pela escola fazendo o maior sucesso e causando, obviamente, sentimentos de inveja naquelas garotas que não conseguiam alcançar o nível de popularidade dessa dupla inseparável.
Para muitos esse comportamento denotaria frivolidade, para outros indiferença com os sentimentos alheios. E para terceiros, simplesmente nada. Há pessoas que realmente não se importam em ser popular e apresentar outros comportamentos ditos típicos da adolescência. Era o caso de Vera.
A família de Vera era humilde. Morava no anexo do depósito de uma tecelagem onde o pai trabalhava como vigia. Graças a ajuda do patrão, ele conseguira uma bolsa integral para a filha no mesmo colégio de Andréia e Fabíola. Almejava com isso dar a ela condições de obter uma vida melhor. Infelizmente isso ainda iria demorar um pouco a acontecer. Naquele momento Vera era vítima não só da indiferença como também do sarcasmo e da hostilidade de algumas alunas que acreditavam que ali não era o lugar dela.
Era duro aguentar o olhar de desprezo, as piadinhas e as indiretas que lhe dirigiam as colegas. Por vezes pensara em jogar tudo para o alto e desistir dos estudos, de uma carreira, de uma vida melhor. Se ainda não o fizera era para não dar esse gostinhos as intrigueiras que a atormentavam.
De tempos em tempos o colégio organizava um passeio recreativo-cultural, ocasião muito aguardada por todas por oferecer um alívio a rígida disciplina imposta durante as aulas. Dessa vez o passeio era na Quinta da Boa Vista, mais especificamente no Museu Nacional, com direito a pic-nic nos jardins do palácio.
Após o meio-dia as professoras começaram a arrebanhar suas pupilas para retornar à escola, de onde seus pais as levariam para casa. O clima era festivo, com o alarido típico de uma reunião de colegiais despreocupadas com a vida.
Os ônibus fretados para a excursão aguardavam suas passageiras estacionados ao longo do meio-fio, do lado de fora da Quinta. Antes de embarcar, Fabíola resolveu comprar pipocas de um senhor que estava do outro lado da rua. Ao passar entre dois dos ônibus parados, ela olhou para trás para perguntar a Andréia se também queria um saquinho, sem se aperceber que um automóvel se aproximava. Vera chegou a estender o braço tentando segurá-la, mas não chegou a tempo. Ao entrar na faixa de visão do motorista já era tarde. O choque foi inevitável e ela foi arremessada ao chão. Toda a alegria do momento imediatamente se converteu em choro e gritaria. Na pista, Fabíola jazia numa pose desconfortável, bastante machucada e com seus pertences espalhados a sua volta. Batera forte com a cabeça e uma mancha vermelha já maculava irremediavelmente a blusa branca do uniforme. Enquanto as professoras juntavam a menina do asfalto, as coleguinhas iam recolhendo os cadernos, livros, estojo e iam colocando de volta na bolsa para depois devolvê-los a menina. Ao menos era o que supunham que fariam. Fabíola deu entrada como morta no hospital, vítima de grave trauma craniano. Nada mais havia a fazer a não ser chorar pela perda irreparável daquela jovem, colhida na flor da idade.
A intensidade da dor dessa perda para os pais de Fabíola é simplesmente indescritível. Filha única, criada com carinho, educada com esmero, com tudo do bom e do melhor. Uma moça íntegra, amada e respeitada pelas professoras e todos que com ela conviviam.
Todas essas qualidades, entretanto, não evitaram o que sobreveio a sua morte.
Alguém, a qualquer hora do dia ou da noite, ligava para um conhecido da falecida e falava horrores sobre ela. Não poupava o uso de termos sórdidos para descrever a índole da jovem, descrevia comportamentos repulsivos e afirmava que a mesma teria usado palavras duras - para dizer o mínimo - ao se referir a pessoa que atendia à ligação.
Isso aconteceu inúmeras vezes. Mortificados, os pais da menina foram a polícia, que registrou a ocorrência, mas pouco pode fazer. Sem identificador de chamadas não havia como saber de onde eram feitas as ligações. O difamador se acobertava no anonimato para perpetrar suas maldades impunemente.
Até ao Cônego da paróquia, que a havia batizado, apelaram. O mesmo fez um sermão que chegou as raias da violência ao descrever os castigos destinados a quem estava praticando ato tão ignóbil. Inutilmente. Naquela noite a vítima foi justamente ele, o padre.
De duas coisas se podia ter certeza. A primeira é que quem fazia as ligações estava de posse da agenda telefônica de Fabíola e a segunda é que pertencera ao seu círculo de amizades. Pelas coisas que dizia, não deixava dúvidas que era alguém que fora próximo a ela. Era da agenda que o infame tirava os nomes de sua audiência involuntária. E era evidente que nutria uma inveja doentia da moça, pois fazia de tudo para menosprezar sua memória e diminuir o apreço que todos tinham por ela.
Quando essa informação se tornou pública foi um alvoroço na escola. Todas queriam saber quem estava de posse da agenda e como havia conseguido se apoderar dela. Tudo indicava que a caderneta fora jogada com os demais pertences que estavam na bolsa na hora do atropelamento e, enquanto todas as atenções estavam voltadas para a acidentada, esse alguém a pegou e levou consigo. O que levava a crer que essa pessoa estava presente na hora do acidente e ajudou a recolher os objetos esparramados pelo choque.
Agora os grupos se organizavam no pátio da escola durante o intervalo para listar quem preenchia os requisitos necessários para ser o culpado. Andréia liderava o maior e mais entusiasmado desses grupos. Durante as discussões vários possíveis nomes surgiram, mas apenas um era consenso. O de Vera. De acordo com algumas versões maldosas, ela teria sido vista esticando o braço para empurrar Fabíola em direção ao carro.
Vera procurava não dar atenção ao que se passava ao seu redor. Desde que entrara na escola era antagonizada e não seria agora que iria se deixar abalar por isso. Continuou seguindo sua rotina da melhor forma possível. Até que algo inesperado a fez gelar dos pés a cabeça.
Toda noite, por volta das dez horas, Vera levava um lanche para seu pai. O anexo era próximo do depósito, mas para chegar na guarita do vigia era preciso atravessar uma grande área pouco iluminada, onde haviam vários tapumes separando os diferentes tipos de tecido.
Ao passar pelo local Vera percebeu que havia uma fraca luminosidade saindo de uma das divisórias e foi até ela, supondo estar vendo o facho da lanterna que seu pai costumava usar. Não era seu pai. Era Fabíola, ou o que restara dela, pairando alguns centímetros acima do chão. Estava desfigurada, com a roupa rasgada e suja. Vera não pode dizer se eram manchas de sangue porque o espectro não apresentava cor, apenas tons de um cinza azulado. Se pudesse mover suas pernas Vera certamente teria saído correndo dali. Mesmo paralisada pelo susto, pode perceber que Fabíola não queria lhe fazer mal. Parecia pedir ajuda.
Com a mão direita acenava, pedindo que Vera se aproximasse. Com a esquerda segurava algo que a princípio a menina não conseguiu distinguir exatamente o que seria. Parecia uma caixinha ou algo assim.
De repente a imagem de Fabíola esvaneceu no ar e Vera pode seguir o seu caminho. Muito abalada pela experiência achou melhor guardar segredo de todos, inclusive de seus pais.
A partir dessa noite levar a refeição tornou-se um tormento. Vera temia encontrar novamente a imagem tão maltratada da colega morta. Por outro lado tinha certeza que ela tentara comunicar algo e sua curiosidade a respeito crescia a cada visita ao depósito.
Uns três ou quatro dias após o primeiro evento Fabíola tornou a se manifestar. Dessa vez foi no corredor que ligava a casa ao depósito e Vera ficou apreensiva, pois não queria alarmar a mãe que sofria com problemas cardíacos. O estado de Fabíola parecia ter se agravado e Vera se perguntava se isso seria em função do acidente ou dos acontecimentos relacionados aos telefonemas desabonatórios. Optou pelo segundo, considerando que os ferimentos sofridos em vida não deveriam se agravar após a morte.
Como da primeira vez o fantasma gesticulava com a mão direita e trazia algo na esquerda. Menos apavorada que antes, Vera concentrou sua atenção nos lábios que moviam-se fracamente e tentou decifrar o que diziam.
— A-ma-lha...
Balbuciou Vera sem entender porque Fabíola estava preocupada com um dos itens do estoque da fábrica de tecidos.
Pouco antes de Fabíola sumir Vera percebeu que os sinais não eram para que ela se aproximasse, mas para que olhasse para o objeto que ela trazia na mão esquerda. Um pequeno caderno.
— A agenda!
Num átimo de segundo as peças se encaixaram e Vera compreendeu a mensagem.
— A agenda está com alguém chamado Amália ...
Mas como ter certeza? A única Amália conhecida por ela era uma das garotas da turma de Fabíola e Andréia. Eram amigas, porque ela faria uma coisa dessas?
— Para saber, só perguntando!
E correu para entregar a janta para o pai, que aguardava faminto.
No dia seguinte, ao sair da escola, foi ter uma conversa com Andréia, que estranhou a abordagem de Vera.
— Andréia, conheces uma garota chamada Amália?
— Conheço. Ela estuda em nossa escola, mas em outra classe. Porque perguntas?
Vera suspirou fundo e, para não assustar a colega e não parecer louca, contou ter sonhado com Fabíola lhe dizendo que essa tal Amália estava com a agenda desaparecida.
A princípio Andréia não respondeu. Pelo semblante era possível ver que levara o assunto a sério. Na verdade o aviso de Vera vinha de encontro a uma suspeita que começara a ter há alguns dias.
— Foi sonho mesmo? Tens certeza?
Vera empalideceu e reafirmou o que havia dito. Andréia então lhe contou que Amália era uma moça um pouco mais velha que elas, bastante tímida, que havia se aproximado de Fabíola por pressão da mãe, no intuito de aumentar o círculo de amizades. Sempre achara estranha essa atitude, mas não ao ponto de suspeitar de algo mais grave. Entretanto, notara que após o acidente ela andava sumida e vivia cheia de segredos.
— É provável que a admiração dela pela Fabíola tenha se convertido em inveja doentia. Precisamos falar com essa bisca.
Finalizou Andréia. Ato contínuo deu meia-volta e partiu em direção a casa da pretensa amiga.
Foram recebidas pela mãe, visivelmente satisfeita em ver que a filha tinha, enfim, um círculo de amizades.
— Oi - disse Andréia - a Amália está? Gostaríamos de falar com ela.
— Entrem meninas. Ela está na sala, falando ao telefone e não demora. Fiquem a vontade.
Essa era a deixa para que Vera e Andréia se aproximassem a tempo de escutar Amália denegrindo a morta para alguém do outro lado da linha. Sobre a mesinha do telefone, a agenda. Tão entretida estava que nem percebeu a chegada das duas. Pelo visto Amália não tinha qualquer receio de ser descoberta e fazia as ligações dali mesmo, no conforto do lar.
Resoluta, Andréia se aproximou furtivamente e tomou a caderneta para si.
Só nesse momento Amália percebeu que não estava só e que seu segredo acabara de ser revelado.
Muito nervosa, ainda tentou se justificar:
— Eu só estava tentando manter viva a memória da Fabíola ...
Lágrimas escaparam dos olhos de Andréia ao pensar que estivera ao lado daquela criatura todo esse tempo sem desconfiar de nada.
— Não vales um tostão furado Amália.
— O que vão fazer agora?
Perguntou aflita e cabisbaixa.
— Vou devolver essa agenda à mãe da Fabíola e acho bom começares a desfazer o mal que andastes espalhando.
Vera estava um pouco mais atrás, escutando a discussão, quando viu emergir da cozinha a mãe de Amália com uma bandeja onde estavam três copos e uma jarra de suco. Estavam, pois quando ela se deu conta sobre o quê as duas falavam perdeu as forças e deixou tudo cair, esparramando a groselha sobre o tapete.
Ao ver o vermelho penetrando naquelas tramas claras Vera involuntariamente lembrou da mancha de sangue ensopando o uniforme da colega deitada no asfalto.
Deu um passo a frente e tocou no braço de Andréia.
— É melhor sairmos agora.
Disse e foi puxando a colega para a porta.
Aos pais de Fabíola disseram que a agenda fora encontrada no local do acidente em uma das buscas destinadas a recuperar os pertences que ainda estavam perdidos.
Os telefonemas cessaram e nunca mais se ouviu sequer falar na tal da Amália. A boca pequena corria o boato que o pai fora acusado de dar um desfalque na empresa onde era contador e fugira com a família para o Paraguai. É muita coincidência, mas vai saber.
Vera e Andréia se tornaram amigas e retomaram suas rotinas sem esquecer o estranho acaso que as unira. Mais confiante, Vera contou a Andréia como ficara sabendo que Amália era quem havia surrupiado a agenda.
— O que não entendo é por que ela te procurou e não a mim. Eu era a melhor amiga dela ...
— É verdade Andréia, mas acho que tenho uma explicação. No dia do acidente, quando passávamos entre os ônibus, eu tive um pressentimento ruim e tentei puxar a Fabíola para trás.
— Eu lembro disso.
— Infelizmente não pude alcançá-la a tempo. Ela me viu esticando o braço e desviou, achando que era uma brincadeira. Estava olhando bem dentro dos meus olhos e rindo no instante em que o carro a arremessou ao chão. Eu devo ter sido a última imagem que ela viu em vida.
— E talvez naquele instante ela possa ter percebido algo em ti que até então não havia notado.
Andréia parou de falar e cruzou os braços. A sineta tocou indicando o fim do intervalo e as duas voltaram para a sala de aula em silêncio.
Naquela noite Fabíola apareceu pela última uma vez. Estava radiante no seu imaculado uniforme de colegial. Os ferimentos haviam desaparecido e ela estava ali apenas para se despedir. Emocionada, Vera viu aquela imagem fantasmagórica sumir lentamente, deixando no ar um aroma de alívio e gratidão. Apressou o passo e foi levar a janta para seu pai, que a aguardava faminto.
Vou destruir minha agenda agora mesmo!
ResponderExcluirRecomendo reforçar a senha do celular também !! ;)
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