Os dois lados da mesma caixa
O causo a seguir é quase uma anedota, mas acreditem, é verídico - apenas os nomes foram trocados para manter a privacidade dos envolvidos. Quem conta ainda vive e tenham em mente que a realidade pode ser muito mais surpreendente que a ficção!
Uma pequena introdução
No ano de 1970, D. Martha era uma dona de casa dedicada ao marido e seus três filhos (a caçula só viria mais tarde, na esteira das comemorações da conquista da Taça Jules Rimet pelo Brasil). Era casada com um, como se diz lá no Sul, gringo. Gringos são os imigrantes europeus e seus descendentes diretos nascidos na colônia (assentamentos numa região rural, destinados aos recém imigrados e por eles colonizados). Normalmente são muito apegados a família e as tradições dos países de onde vieram.
Abelino, esse era o nome do marido de D. Martha, tinha origens italianas - das quais se orgulhava muito. Seus pais, de acordo com o costume, eram carinhosamente chamados de Nonno e Nonna (avô e avó em italiano, respectivamente) por todos os membros da família. Até mesmo por D. Martha, que tinha ascendentes germânicos.
Ao chegarem no Rio Grande do Sul, os antepassados do Nonno e da Nonna se estabeleceram numa colônia afastada, de difícil acesso, localizada num distrito que a época pertencia ao município de Garibaldi. Como tantos outros criavam vacas, porcos, galinhas e pequenos animais para consumo próprio. Trabalhavam na lavoura para ter o que comer, mas também se dedicavam ao cultivo de parreirais que produziam a matéria-prima indispensável para a produção do vinho.
O Nonno gostava muito de queijo. Sua produção era famosa, assim como o seu senso de humor. Há inclusive um pequeno episódio que demonstra bem essas suas duas facetas.
Durante o processo de cura o excesso de água extraído do queijo dá origem ao soro, que normalmente é descartado. Entretanto, havia entre os vizinhos um grupo que apreciava muito esse subproduto. Sempre que a produção chegava nessa fase apareciam para beber e jogar mora, tumultuando a tranquilidade da fabriqueta. Apesar dos protestos do Nonno.
Cansado de pregar ao vento, Don Beppe - o Nonno - resolveu dar uma lição aos encrenqueiros adicionando um novo ingrediente à mistura: laxante. Isso foi num sábado. No domingo, durante a missa, vários fiéis abandonavam a celebração, correndo em direção as macegas e já arriando as calças. Cada vez que um se levantava o Nonno se virava para ver quem era e dava uma risadinha. Tantas foram as vezes que ele se virou que a Nonna precisou intervir para que ele parasse quieto durante o sermão, depois de uma olhada atravessada do cônego.
Esse era o Nonno. Grosso como dedo destroncado, mas dono de um excelente coração.
Mas vamos ao causo.
Lado de fora
Estava D. Martha cuidando de seus afazeres domésticos, aproveitando que as crianças estavam na escola, quando tocaram a campainha. Era um de seus cunhados - ela tinha seis, mais duas cunhadas. Esse trabalhava numa grande cooperativa vinícola na serra gaúcha como motorista de caminhão. Vinha frequentemente a Porto Alegre a serviço e, por isso, não havia motivos para estranhar sua visita. Ele costumava dar uma passadinha na casa dos irmãos sempre que possível para matar a saudade e manter contato.
Dessa vez trazia salame, queijo, uvas, vinho! e uma caixa de madeira totalmente fechada. Segundo ele, trouxera a tal caixa a pedido do Nonno, que estava passando alguns dias em Garibaldi. Naquela ocasião estava estranhamente apressado. Nem quis entrar para tomar um cafezinho e saiu sem dizer qual seria o conteúdo da caixa misteriosa.
Felizmente D. Martha não era curiosa. Se fosse, imaginem a aflição da criatura tentando adivinhar o quê estaria guardado no interior do caixote. Zelosa pela limpeza da casa, tirou o pó do objeto umas três vezes naquela tarde e o trocou outras tantas vezes de lugar. A cada operação dava umas sacudidelas, na esperança que o ruído desse uma pista e permitisse adivinhar o que pudesse ser. Aliás, diga-se de passagem que o som era um pouco estranho. Parecia o barulho feito por um chocalho de grandes proporções.
Ao cair da tarde esperou pelo marido na soleira da porta. Assim que ele chegou deu-lhe um beijo e foi contanto as novidades.
— Seu irmão de Garibaldi esteve aqui e deixou algumas coisas.
— Sim meu bem. Estou vendo.
O Marido só tinha olhos para as garrafas de vinho.
— Ele também trouxe essa caixa.
E lá vinha ela carregando o trambolho para a sala.
— Ah tá.
Respondeu o marido enquanto buscava o saca-rolhas na cozinha.
— O que será que tem dentro, bem?
Disse ela genuinamente desinteressada. Só que não.
— Sei lá. Pra quem é?
— Ele disse que é para o teu pai e que quando eles voltarem a Porto Alegre ele vem aqui pegar.
— Se é do Nonno é melhor não mexer.
Profetizou sabiamente Abelino, enquanto escapava para o interior da residência para terminar seu cálice de vinho em paz.
Nem é preciso dizer que essa postura arredia do marido ajudou em nada, não é mesmo?
No dia seguinte a caixa continuou seu silencioso jogo de sedução contra a pobre da D. Martha, que não resistindo mais subiu num banquinho - a caixa estava numa prateleira alta - e a puxou com força. Infelizmente o esforço foi demasiado e as duas caíram estrondosamente sobre o piso da área de serviço. Ao ouvir o barulho provocado pela queda Rosalita, a empregada, correu para ver o que estava acontecendo. No meio do caminho ouviu um terrível grito de horror e seu coração deu um salto tão forte que quase saiu pela boca.
Ao abrir a porta no final do corredor deu de cara com D. Martha desmaiada, a caixa emborcada a seu lado, com a tampa aberta. Sobre a patroa, algo que a princípio não pode distinguir ao certo o que seria. Quando finalmente se deu conta do que era, Rosalita também desmaiou.
Lado de dentro
Don Beppe e a esposa haviam se mudado com as crianças para a Capital há muitos anos. A vida na roça era difícil, eles estavam ficando velhos e queriam que os filhos estudassem para "ser alguém na vida", como se dizia na época. Apenas o primogênito, que era o motorista de caminhão, havia permanecido em Garibaldi. Agora que todos já estavam casados e encaminhados, levavam uma vida tranquila numa casa situada num bairro afastado do centro. Sempre que possível, voltavam à serra para rever parentes e relembrar os bons e velhos tempos da juventude.
Normalmente ficavam hospedados na casa do filho. De temperamento alegre, era o que mais se parecia com o pai, tanto em estatura, como em força e senso de humor.
Os nonnos já estavam em Garibaldi há alguns dias quando decidiram visitar o antigo distrito onde haviam começado a vida de casados. Foi um dia de alegrias e reencontros, pois todos lembravam de Don Bebbe e suas travessuras. Principalmente os apreciadores de soro.
Com tantas recordações vindo a tona - e provavelmente porque já viesse planejando isso há tempos - o Nonno pediu para dar uma passadinha no cemitério onde estavam sepultados seus pais. Uma vez lá expos seu plano: transladar os restos mortais para o jazigo que a família tinha num cemitério de Porto Alegre. O filho achou a ideia um pouco mórbida, mas decidiu acatar o desejo do pai e foi procurar o responsável pela administração do campo santo.
Naquela época tudo era mais simples, principalmente quando se é amigo de infância do coveiro. Bastou pedir e no dia seguinte os ossinhos já estavam acondicionados numa bela caixa de madeira, prontos para serem despachados.
Como o primogênito estava designado para transportar uma carga para a Capital, pediram a ele que levasse a tal caixa e a deixasse na casa de Abelino. Só que ao se desvencilhar da entrega macabra - sabe-se lá por qual motivo - ele não contou qual seria o conteúdo. E deu no que deu.
Conclusão
D. Martha sobreviveu ao susto, mas não aprendeu a lição. Continua curiosa até hoje.
Seu Abelino aposentou-se e ainda é o marido de D. Martha - fato notável nos dias atuais. Segue apreciando cálices de vinho sempre que possível.
Depois de uma vida longa e serena, o Nonno e a Nonna partiram para o descanso eterno, assim como vários de seus filhos, inclusive o mais velho. Hoje estão reunidos no jazigo da família, onde dividem o espaço com os viajantes da caixa.
Como todas as suas histórias, muito bem escrita. Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado! Prometo continuar tentando !!
ExcluirKkkkk muito bom e que belo susto ao ver o conteúdo da caixa!
ResponderExcluirMuito obrigado! O susto foi tão grande que ela lembra dessa estória até hoje kkkk
ExcluirMuito bom! Apesar do susto, me trouxe ótimas lembranças!
ResponderExcluirAs boas lembranças são a melhor parte desse causo ...
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