Dia confuso
Hoje foi um dia confuso. Lembro de acordar cedo porque tinha uma entrevista de emprego. Vesti minha melhor camisa - a única que não tem os punhos puídos - e saí apressado, carregando uma pasta preta com meu currículo e outros documentos. Agora é noite e estou sozinho nesse ônibus que não sei para onde vai.
— Onde está a minha pasta? - pergunto em voz alta. O motorista não se digna a responder.
Parto do princípio que ele não teria como saber. Devo tê-la deixado cair. Procuro embaixo dos bancos e nada. De joelhos no corredor, olho para cima e flagro o condutor me vigiando através do retrovisor. Fico arrepiado sem saber por quê.
De volta ao assento, respiro fundo para conter a agitação que me domina. Analiso atentamente os detalhes ao redor. Nada há de especial. O carro parece novo. É um daqueles modelos que aparecem nas propagandas da prefeitura. Ainda está inteiro, mas em breve algum vândalo há de mudar isso.
Esforço-me para refazer os passos que me trouxeram até aqui. Minha camisa, molhada, gruda na pele e traz uma lembrança. Chovia pela manhã. Ao sair de casa um pé de vento virou meu guarda-chuva do avesso, escangalhando algumas varetas. Larguei o trambolho tornado inútil numa lixeira e corri cobrindo a cabeça com a pasta preta. Por estar desempregado não tenho dinheiro para comprar outro. Só restou chegar à entrevista ensopado. Tentei me recompor no saguão do edifício, inutilmente. Os demais candidatos estavam bem apresentados e certamente um deles deve ter ficado com a vaga.
O próximo compromisso da agenda era reclamar de uma cobrança abusiva feita pela companhia de energia. O atendente, mecanicamente gentil, explicou que primeiro é preciso pagar a conta para depois reivindicar a devolução do valor excedente - isso se o pedido for aprovado. Sorrindo, completou:
— O senhor não precisava ter saído nesse tempo para vir aqui. Podia ter feito a solicitação no nosso site.
Poderia, claro, se o acesso à internet não tivesse sido cortado por falta de pagamento. Constrangido, preferi ocultar esse detalhe e fui embora calado.
Olho através das janelas e vejo o brilho das luzes da cidade desfocados pelas gotículas da chuva que continua a cair. Vitrines, letreiros, transeuntes na calçada são borrões que vislumbro a uma velocidade que aumenta gradativamente.
Sinto um aperto no peito e levo, instintivamente, a mão sobre o coração. Num relance vejo a mim chegando em casa antes do horário do almoço, molhado e acabrunhado. Talvez Anelise, minha esposa, estivesse dormindo, por isso entrei sem fazer barulho. De fato ela estava na cama, porém acordadíssima, a julgar pelos gemidos e gritinhos abafados que vinham do quarto. Não quis acreditar no que estava acontecendo até ouvir a voz de Jeremias, meu vizinho e, supostamente, amigo. Aos poucos as peças foram se encaixando e eu atinei de onde vem a comida que ela jura ser procedente das cestas básicas distribuídas pela paróquia da qual fazemos parte.
Sobre a mesa de jantar havia um envelope com o timbre da imobiliária. Seco as mãos no pano de prato que cobria os itens do café que ainda estavam lá e rasgo a lateral com cuidado, pensando tratar-se da cobrança do mês. Na verdade é uma ordem de despejo motivada pelos aluguéis atrasados. Nova rodada de risinhos chamaram minha atenção para a dupla que se refestelava alheia a tudo. Decidido a transformar suspeita em certeza, cruzei o corredor que leva ao quarto. Parei na porta. Demorou alguns minutos para perceberem que estavam sendo observados, o que pareceu incomodá-los apenas por terem de parar o que estavam fazendo. Debochada, Anelise prendeu o cabelo num coque improvisado e comentou:
— Parece que o corno chegou antes do previsto.
Jeremias levantou-se sem desviar os olhos do ponto onde me encontrava. Vestiu as calças devagar, depois a camiseta da empresa, as meias e, por fim, os sapatos. Ao passar por mim, sorriu sem graça e deu-me um tapinha no ombro. Involuntariamente, fixei a vista no logotipo que passou na altura do meu nariz, lembrando-me que ele tem um emprego e pode pagar por coisas que estão fora do meu alcance. Se tivesse conquistado a vaga pela manhã tudo seria diferente. Aguardei, absorto, enquanto se afastava sem proferir palavra.
Abatido, mostrei a Anelise a carta aberta.
— Vamos ser despejados.
— Você vai. Eu vou embora hoje mesmo.
— Para onde?
— Jeremias e eu vamos morar juntos. Agora some que eu preciso me vestir.
Sumir era tudo que eu queria naquele instante.
Um forte sacolejo puxa-me de volta à realidade. Firmo a vista tentando enxergar alguma referência que indique o caminho. Há cada vez menos pontos luminosos do lado de fora e fica difícil descobrir onde estamos.
— Meus pés estão me matando - reclamo em voz alta.
Para minha surpresa, o motorista responde sem voltar o rosto:
— Tem certeza de que são os pés?
Dito isso, gargalha de maneira sinistra e volta ao mutismo inicial.
Passado o susto, examino meus sapatos. Apesar de maltratados e sujos, o desconforto não é culpa deles. A sensação de aperto é causada pelo inchaço dos pés, confinados num espaço menor que seu volume atual. Fico descalço. A princípio tive receio de fazê-lo, depois pensei:
— Que diferença faz, estamos somente eu e o motorista.
Começo a massageá-los na tentativa de aliviar a dor. Desconfio que estão enormes por ter andado em demasia.
Volto à cena do quarto, sendo expulso por Anelise. Vou a cozinha e cato qualquer coisa pesada. A seguir, vejo relances dela seminua, tentando proteger o rosto, seguidos por uma profusão de manchas vermelhas. Escuto o som abafado de móveis quebrando, imprecações e, por fim, o silêncio. Isso explica por que saí andando. Precisava deixar aquela ingrata para trás e localizar Jeremias. Foi difícil encontrá-lo por ser ele, pasmem, motorista de ônibus.
Como estou sem um tostão nos bolsos foi preciso caminhar por boa parte da cidade em busca do amante de Anelise. Sempre que havia oportunidade, perguntava a algum de seus colegas em qual linha estava ele trabalhando naquele dia. Tenho noção que meu aspecto não era dos melhores e que minha expressão dificilmente disfarçava a raiva que me consumia por dentro. Talvez por isso nenhum deles se atreveu a entregar o parceiro. Graças a essa lealdade mal empregada gastei um tempo maior do que o necessário. Entretanto, ao cair da tarde, alcancei meu objetivo.
— As mãos já melhoraram?
A pergunta, em tom de deboche, veio do motorista, que parecia mais interessado em mim do que na estrada a sua frente.
— Elas estão bem, são os meus pés que ...
Enquanto falava senti uma ardência forte. Instintivamente, levantei os braços para examinar as mãos e fiquei sem palavras. A pele, da ponta dos dedos a altura dos ombros, incluindo parte do peito, estava vermelha, inchada e coberta de bolhas. Pelo visto eu sofrera um acidente durante a viagem e não percebera. Gritei alto, mesclando dor e pavor.
— Segura tua onda que estamos quase no hospital.
Pelo menos aquele celerado tivera o bom senso de procurar assistência. Assim que ele estacionou o veículo, levantei e fiz menção de sair. Antes de chegar à porta estaquei, estarrecido. Parada no primeiro degrau estava Anelise, desfigurada. Com ódio na voz, sibilou em minha direção:
— Olha o que você fez comigo, desgraçado!
Seu estado era, no mínimo, lastimável. Vestia uma camisola grosseira de algodão, daquelas utilizadas pelos acamados durante tratamento médico. A tala que imobilizava o pé direito dificultava a subida. Em todas as partes visíveis, equimoses de diferentes tamanhos produziam um efeito repulsivo. O olho esquerdo estava roxo, fazendo par com os hematomas que se espalhavam pela face.
Ela entrou e foi mancando até o fundo, onde sentou-se na última fileira, fincou os cotovelos nos joelhos e apoiou a cabeça com ambas as mãos, dando a entender que não queria papo. Eu a conhecia o suficiente para saber que o melhor era não insistir.
Antes que pudesse sair as portas se fecharam e o ônibus arrancou bruscamente, fazendo-me perder o equilíbrio. Um forte cheiro de gasolina invadiu o ambiente. Procurei a origem e a encontrei nas mangas chamuscadas de minha camisa.
— Mas que diabo ... - pensei em voz alta.
— Sim? - respondeu o sujeito ao volante.
Nesse instante lembrei onde deixara a pasta preta: na poltrona da sala. Coloquei-a ali logo após chegar em casa. Ao sair novamente carregava algo, contudo não era ela. Levava uma garrafa descartável de dois litros, a qual enchera com a gasolina que restava no tanque da fubica parada na garagem por falta de manutenção.
Tateei o bolso da calça e encontrei um isqueiro enegrecido. Normalmente o utilizávamos para acender o fogão. O que fazia ali comigo?
— Vai ser lento na casa do caramba, meu chapa. Não lembrou ainda?
Era o motorista, irritado, escorado na proteção que separa a cabine dos passageiros.
— Quem está dirigindo? - perguntei assustado.
Indiferente a minha pergunta, continuou falando pausadamente:
— Você bateu na Anelise. Pegou a garrafa e o isqueiro. Saiu feito um doido procurando Jeremias. Quando o encontrou, fez o quê?
Claro! Eu conseguira encontrar aquele salafrário. Como ele é mais forte do que eu, tive a brilhante ideia de ensopá-lo com gasolina e atear fogo. Por isso a garrafa. Infelizmente o plano não saiu conforme o esperado.
Jeremias é motorista há anos. Está acostumado a lidar com todo tipo de maluco que aparece e não se intimida com facilidade. Ao perceber do que se tratava partiu para cima, tentando desarmar-me. Durante a refrega o combustível espalhou-se de forma incontrolável, caindo boa parte sobre mim. Alucinado pelo desejo de vingança, trisquei com o isqueiro sem medir consequências. Seguiu-se uma explosão. Ouvi gritos desesperados, possivelmente das pessoas que ele transportava. Senti um calor infernal, depois uma profunda sensação de abandono. Devo ter apagado. Acordei aqui, sem saber para onde vou.
— Finalmente!
A voz estridente de Anelise cortou meu pensamento. Ela se aproximara sem que percebesse. Falava possuída por uma fúria incontrolável:
— Nós estamos mortos imbecil. Por sua culpa. E adivinha para onde ele está nos levando.
— E Jeremias? - perguntei aflito.
Impressão minha ou a situação diverte o motorista? É ele quem responde a pergunta:
— Deve estar tratando as queimaduras. Jeremias sobreviveu. Bem como os demais passageiros do ônibus que você incendiou.
Abismado por essas revelações, procuro as janelas e tento enxergar algo através da profunda escuridão que nos cerca. A velocidade aumenta e percebo que estamos descendo uma interminável ladeira.
Cuidado com o ônibus que pega!
ResponderExcluirPelo menos nesse não tinha cobrador ... rs
Excluir