Oficleide
Na segunda década do século XXI, enquanto o Sul do Brasil naufragava em um dilúvio sem precedentes, os rios do Norte secavam até esturricar o solo que lhes servia de leito.
Como tantos outros ribeirinhos, Anastácio tirava o sustento das águas de um afluente do Rio Negro. Agora, peregrinava a pé enxuto buscando o que restara da imensidão do rio: um fiapo barrento que minguava paulatinamente.
Arrastava-se debaixo de um sol escaldante, machucando os pés calçados com velhas chinelas nas pedras expostas. Caminhava e amaldiçoava sua sina. Em casa, esposa e três curumins dependiam de sua habilidade em trazer o peixe que os manteria vivos por mais uma noite. Daquela vez foi diferente. Distraído, mirando a margem sempre distante, tropeçou feio, ferindo o dedo maior do pé direito. Maldisse seu azar numa explosão de impropérios. Ajoelhou-se para atar o ferimento com um farrapo arrancado da camisa puída, doação da paróquia local. Ao abaixar-se notou o ponto onde dera a topada, facilmente identificável em função do borrão vermelho-sangue. Brilhava intensamente ao refletir a luz incidindo nele. Era metálico.
Penou para desenterrar a peça sem ferramentas adequadas. Anastácio contava apenas com sua faquinha de pescador e a esperança de achar um tesouro. Por fim extraiu o treco das entranhas da terra. Nunca tinha visto geringonça igual: um tubo descomunal, esquisito, retorcido, com chaves e orifícios. Certamente estivera submerso há anos. A ausência de ferrugem e a pátina esverdeada que o revestia indicavam ser de cobre. Em sua inocência de caboclo pensou ser a sorte a lhe sorrir. Esqueceu momentaneamente a dor frente a possibilidade de faturar alguns trocados no Ferro Velho do Seu Altair.
Seguiu mancando para o pesqueiro. Receoso que outrem levasse sua descoberta, levou o trambolho à custa de muito esforço. Era pesado e desconfortável de segurar. Na volta, trocava de mão o objeto e o samburá contendo o parco resultado da pescaria para aliviar a fadiga dos braços cansados. Nos bons tempos estaria chegando com a canoa repleta de peixes.
Avistou a casa. Presentemente não passava de uma palafita anacrônica, fincada na aridez, sitiada pelo mato ressequido, a espera da chuva que devolveria sentido a altura na qual a ergueram.
Ao chegar foi recebido com algazarra pelas crianças e cisma pela mulher, farta de cozinhar a miuçalha que mal cobria a cova do dente. Agitou o samburá na cara do marido, gritando:
— Pacu ou tucunaré nem pensar, né Seu Anastácio?
Olhou com desprezo o tubo pousado a seu lado.
— Mas pra carregar essa imundícia sobra ânimo!
Engoliu calado o mau-humor da patroa, entorpecido pelo cansaço crônico de uma existência miserável. Arrastou a imundícia para a porção sombreada do trapiche. Acomodou-se no banco de remendar redes e o examinou atentamente. Ao olhar dentro do largo bocal da parte superior encheu-se de ódio. Constatou estar cheio de areia. Se tivesse verificado logo não teria tido tanto trabalho para transportá-lo. Removeu o quanto pode e o limpou com um trapo. Uma voz lhe dizia para tomar cuidado, pois tratava-se de um achado valioso.
Entrou e depositou o trambolho num canto da sala. Os moleques, curiosos, fuçavam alegremente assustados. Apertavam botões, espiavam os buracos, davam risadinhas e gritinhos a cada reação obtida. Perguntavam o nome daquilo, porém ele não respondia por não fazer ideia.
Naquela noite Anastácio sentiu sede. Levantou-se e teve uma surpresa do outro mundo. Um janota de palheta o aguardava sentado na prateleira, pegado ao filtro de barro. Trajava paletó de linho branco, camisa de seda e gravata borboleta vermelha; deveria ter sido elegante quando vivo. As vestes, salpicadas de lama seca e manchas diversas, cheiravam a umidade.
Seria ilusão causada pela luz baça do candeeiro ou realmente faltavam nacos de sua carne? O janota reparou na perturbação do anfitrião, deu de ombros e explicou:
— Piranhas.
Apontou para o canto, alegando ser o proprietário do instrumento:
— Espero que traga para você a felicidade que roubou de mim.
Esta não era a primeira visagem avistada por Anastácio, cria da mata, versado no sobrenatural desde pequeno. Encheu a cabaça e bebeu lentamente, atento aos movimentos da aparição.
Para alguém a quem furtaram a felicidade ele parecia alegre o suficiente. E falador. Anastácio deduziu, corretamente, ser efeito do tempo passado no fundo do rio. A entidade fez uma mesura com o chapéu e tratou de se apresentar:
— Sou Rudimar, um servo a seu dispor.
Destravada a língua prosseguiu sem tomar alento. Apesar de submerso há mais de 120 anos na região Norte, mantinha o inconfundível sotaque do Sul. Displicente, balançava as pernas no ar, desfiando sua história.
O janota era, ou fora, músico. Ao completar a maioridade, migrou para São Paulo para estudar medicina. Deslumbrou-se com a boemia e estreou na flauta - paixão herdada do avô - em grupos musicais populares. Lá por 1890, mudou-se para o Rio de Janeiro. Aprofundou-se na malandragem e conheceu ilustres personalidades relacionadas a um estilo em plena ascensão: o Choro. Também encontrou a origem de sua desgraça, a bela e desejada Estelita, uma morena de olhos negros e cativantes pela qual apaixonou-se perdidamente.
Graças a sua virtuosidade pertencia a elite dos Chorões. Recebia convites a granel. Conviveu com gente famosa, participou de saraus em mansões. Infelizmente prestígio não quita dívidas e os vinténs pingavam a conta-gotas.
Nessa época, um abastado empresário manauara aportou na cidade recrutando artistas de todos os naipes para integrar o elenco do "Maior Cabaret Flutuante da América Latina". Prometia mundos e fundos àqueles dispostos a topar a empreitada. O dinheiro fluía solto com o Ciclo da Borracha, arrastando aventureiros para o interior da floresta, criando fortunas e potenciais clientes ávidos por diversão e prazer. Falava-se muito dos avanços da modernidade implementados por iniciativa do Barão de Mauá no Amazonas, todavia o ineditismo do empreendimento causou estranheza à Rudimar.
A proposta era tentadora. Estelita aceitara e insistia para irem juntos. Aconchegava as madeixas no peito magro do rapaz e ronronava insinuante:
— O que será de mim cercada por cobras, onças e jacarés, sem um homem valente para defender-me?
Quem resistiria a tais argumentos? Rudimar assinou contrato e rumaram para o Norte. Lá encontraram seu destino atracado entre veleiros e barcaças. O cabaré destacava-se por ser uma embarcação enorme, estalando de nova. Construída sob encomenda, oferecia múltiplos ambientes: bar, restaurante, camarotes e salão de baile com palco para orquestra. Cordas atadas de diversos pontos à chaminé, decoradas com bandeirolas multicoloridas e lanternas, davam-lhe um ar festivo. Na roda de pás do motor a vapor ostentava, em letras monumentais, caprichosamente desenhadas, Bubuia, seu nome de batismo.
A rotina de apresentações era exaustiva, mas o pagamento e a companhia da amada compensavam o esforço. Nos curtos momentos de descanso, sentavam-se coladinhos e teciam planos para o futuro. Apesar de se amarem ardentemente havia um porém. Rudimar e Estelita tinham concepções opostas de felicidade. Ela almejava um lar confortável, com jardim e filhos a correr. Via-se esperando o retorno do esposo ao final do expediente na repartição pública na qual passara a trabalhar após largar as incertezas do ofício de artista. Ele alçava voos estratosféricos, almejando fama e fortuna oriundas de seu talento musical.
Além disso, Rudimar convencera-se que não poderia desposar Estelita nas condições financeiras atuais. Doía-lhe na alma vê-la adulando baronetes da borracha acendendo cubanos com notas de quinhentos réis. O ciúme picava-lhe forte. Temia acordar um dia e descobrir que ela fugira nos braços de um seringueiro rico.
Se ia livrá-la da sordidez do cabaré seria para proporcionar-lhe do bom e do melhor. Queimava pestanas maquinando e o resultado era imutável. Considerando o montante de salário, comissões e gorjetas levaria anos para amealhar a quantia necessária para concretizar seu sonho. Foi aí que teve a brilhante ideia de mudar de posição na orquestra. Bons flautistas abundam em todo lugar. A chance de sobressair-se neste instrumento é baixíssima. Necessitava de um diferencial, algo no qual pudesse ser inigualável.
Certa manhã, o Bubuia ancorou no porto de Manaus para manutenção e reabastecimento. Rudimar dirigiu-se a uma banca cujo dono, a seu pedido, mandava vir periódicos do Rio de Janeiro. Sentia saudades do fervilhante panorama cultural carioca e gostava de manter-se atualizado. Ao passear os olhos num dos jornais deparou-se com o anúncio de uma loja da Rua do Ouvidor especializada em partituras e instrumentos. Novidades Musicaes apregoava o reclame, listando os sucessos disponíveis a preços módicos. O último item era uma polca composta por Irineu de Almeida, colega de perambulação nos arredores dos Arcos da Lapa. Um relâmpago de lembranças iluminou sua mente e ele saltou exultante da cadeira, assustando Estelita:
— É isso!
A garota entendeu patavinas. Deve ter pensado que o calor ou a malária haviam consumido o parco juízo restante na cabeça de Rudimar. Talvez tenha sido isso mesmo, pois ele concluiu que precisava adquirir um oficleide.
O semblante apático de Anastácio denotava o quanto absorvera dessa mirabolância. Rudimar pausou o causo para explicar:
— Chorões proeminentes adoravam a sonoridade ímpar do oficleide, um instrumento de difícil execução. Oficleitistas eram requisitados por bandas afamadas. Irineu de Almeida foi um deles, notabilizado por performances irretocáveis em grupos de Choro. Se eu tivesse um, seria feito inédito em toda região amazônica. Sucesso garantido e grana no bolso!
Rudimar estava tão convencido do êxito deste devaneio que economizou tostões para importar da França o fruto do seu desejo. Acreditava piamente que com ele conquistaria os seus objetivos. Cego por suas expectativas ignorou os sentimentos de sua parceira, pressupondo que seu sucesso seria também o dela.
— Não dei a devida atenção aos planos que Estelita reservara para mim - ressaltou o janota.
Ambos sonhavam casar-se desde sempre. Não o faziam por falta de dinheiro. Por isso a súbita avareza de Rudimar passou a Estelita a impressão que o noivo esforçava-se para reverter essa situação e levá-la ao altar. Relevou as antigas excentricidades e os novos segredos. Ele andava embatucado, fazia cálculos, correspondia-se com desconhecidos. O amor tudo suporta e ela preferiu dar o crédito que até então ele fizera por merecer.
Meses se passaram. Certo dia, Rudimar avisou Estelita que no decorrer da turnê iria surpreendê-la com uma novidade maravilhosa. A ingênua supôs que seria pedida em casamento numa cerimônia especialmente preparada para ela. No meio da viagem, antes do ensaio da tarde, Rudimar revelou a surpresa: o oficleide. A moça empalideceu sentindo o esfacelar das aspirações carinhosamente concebidas. Confiara cegamente nas juras românticas do amante para ser trocada por um cacareco de metal? Ele bem tentou argumentar, descrevendo o futuro risonho a ser construído a partir deste instrumento. Granjearia fama e fortuna. Poderia finalmente tirá-la da vida de cortesã.
Ela compreendeu de outra forma. Suportara os gracejos, as importunações e a inhaca de capiaus enfurnados nos confins da floresta, cujo único interesse era arrotar grandezas e boliná-la a troco de nada? Captou imediatamente o que se passava. Rudimar investira economias e sacrifícios na própria carreira. Sentiu-se desprezada, humilhada. Arrebatada pela fúria, arrancou o instrumento das mãos daquele estúpido egoísta, correu ao tombadilho, debruçou-se na amurada e o arremessou na esteira de espuma deixada pelo navio. Desesperado ao ver o trágico desfecho do seu sonho, Rudimar jogou-se tentando resgatar o oficleide. Morreu afogado.
Anastácio era analfabeto, contudo não era tonto. Acendeu um cigarro de palha e ponderou consigo mesmo:
— Seu Altair vai pesar a geringonça e pagar uma ninharia com base no peso do cobre.
Rudimar, animado, estimulava o raciocínio:
— Se o ofereceres a alguém com conhecimento musical a probabilidade de ganhares um bom dinheiro aumenta consideravelmente.
Anastácio permaneceu acordado, proseando com Rudimar. Ao alvorecer, despertou o primogênito para acompanhá-lo a Manaus. Descartara sumariamente o uso da voadeira devido ao risco da hélice trincar nalguma pedra em virtude da pouca profundidade do rio. Andaram quilômetros até alcançar o lugar em que o Rio Negro ainda permitia a navegação dos barcos de linha. Pediram a um morador local que passasse um rádio avisando a localização dos dois passageiros.
Do atracadouro seguiram direto ao Teatro Amazonas. Depois de muita insistência, conversas intermináveis com subalternos desinteressados, foram brindados com um golpe de sorte. Ou seria influência de Rudimar, visto de relance por Anastácio, sussurrando no ouvido de um jovem trompetista ao cruzar o saguão? Teobaldo, o trompetista, reconheceu o instrumento. Tomado de curiosidade quis saber como aquela relíquia parara nas mãos de um caboclo isolado no meio do nada. Negociaram um bocado. Findas as tratativas, fecharam acordo por um preço razoável para ambas as partes - Anastácio vivia com pouco, rendimento de músico não é lá essas coisas.
Antes de se despedirem, Teobaldo fez uma promessa. Quando o oficleide estivesse restaurado, falaria com o maestro para organizar uma audição dedicada a homenagear sua descoberta. Um ano se passou sem notícias. Ao entrar na venda da vila mais próxima, aonde fora para reabastecer a despensa, Anastácio teve outra surpresa: o carteiro deixara uma carta endereçada a ele. Acostumado a atender o povo da região o balconista a abriu e leu em voz alta seu conteúdo. Era o convite para a homenagem prometida.
Na data e hora aprazadas Anastácio, a esposa e os três curumins compareceram apertados em suas roupas domingueiras, ocupando poltronas reservadas na primeira fila. Ao anunciarem a execução do choro Carinhoso, de Pixinguinha, o coração de Anastácio deu dois pulos ao invés de um. Ao lado de Teobaldo, empunhando o reluzente oficleide, surgiu Rudimar. Resplandecia em seu paletó de linho imaculadamente branco, palheta nova e sem faltar pedaço. A serenidade respeitosa do recinto dizia que ninguém via o que Anastácio via. Torceu o pescoço em todas as direções. A atenção da plateia estava voltada ao maestro de batuta erguida, pronto para dar o sinal. O janota olhou para Anastácio divertido. Colocou o dedo indicador sobre os lábios, pedindo silêncio. Ao iniciarem, ficou imitando os movimentos de Teobaldo, acompanhando o ritmo batendo com a ponta do pé. Ao soarem os acordes finais aplaudiu, acenou e evanesceu.
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Este conto foi livremente inspirado na notícia RJ2 mostra uma história de pescador que envolve uma relíquia, veiculada no RJ2 em 2024.
Enfim o sucesso!
ResponderExcluirPobre Rudimar ... Ele bem preferia ter sido reconhecido em vida!
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