Sépia


Era inverno e o dia estava lindo, com um céu azul para brigadeiro algum botar defeito. Para Vicente, que acompanhava o sepultamento de Jacinto, um amigo vitimado por um acidente, isso não estava certo. Em sua mente enterros deveriam, obrigatoriamente, ocorrer em dias nublados, de preferência com uma chuva fina a encharcar os casacos dos homens e os chapéus das mulheres. Mas enfim, fazer o quê se o tempo não queria colaborar.

A cerimônia já havia terminado e algumas pessoas permaneciam conversando entre si, lamentando a perda tão precoce daquele jovem promissor.

Vicente estava chateado, é claro, mas suportara bem o golpe da fatalidade. Regulava em idade com o falecido, do qual era próximo e de quem sentia muita falta. Sorriu de lado ao recordar algumas passagens impublicáveis, todas elas envolvendo rabos de saia, que vivera com o amigo. Enquanto tirava um cisco do olho reparou em algo que chamou sua atenção. Uma lápide de granito bastante antiga, na qual se destacava a fotografia de uma garota que parecia sorrir para ele.

— Que efeito interessante – pensou ao se aproximar um pouco mais para ver melhor o rosto que olhava para ele do passado.

Na foto – em tons de sépia – estava retratada uma moça de cabelos negros e olhar penetrante. Pelo estilo das roupas, devia ter sido feita há pelo menos quatro décadas. A passagem do tempo não apagara sua beleza exótica e cativante. Vicente ficou fascinado com aqueles olhos escuros por um longo tempo e não pôde deixar de se perguntar o que poderia ter acontecido para que ela morresse assim, tão jovem e bonita.

Saiu do transe apenas porque alguém se dirigira a ele, estendendo a mão. Os últimos cumprimentos foram trocados e, por fim, Vicente abandonou o local com alguns de seus companheiros. Vivos, é claro.

Decidiram que naquela noite se reuniriam no bar que fazia as vezes de quartel-general da turma para homenagear o falecido. Beberam além da conta, deixando sempre uma caneca cheia na ponta da mesa, onde normalmente sentava Jacinto. Já passava da meia-noite quando Vicente resolveu voltar para casa. O dia fora pesado e era hora de esquecer um pouco a perda do amigo. Ao cruzar a porta em direção ao táxi que o aguardava julgou ver alguém conhecido na calçada oposta, porém a mistura de álcool e cansaço atrapalharam suas tentativas de reconhecer quem poderia ser. 

A noite foi agitada. Vicente teve seguidos pesadelos onde ele e Jacinto eram perseguidos pelas mais diversas criaturas. Num deles estavam presos num corredor sem saída, cujas paredes se afastavam sempre que se aproximavam. Para piorar, algo, ou alguém, envolto na escuridão sussurrava maldições incompreensíveis, nem por isso menos aterradoras.

Finalmente a manhã chegou e Vicente preparou-se para ir trabalhar. Ocupava o cargo de diretor em uma grande empresa na capital e não podia se atrasar para os inúmeros compromissos que o aguardavam ao longo do dia. Tomou seu café e saiu apressado. Ao passar pela porta do edifício onde ficava seu apartamento teve a nítida impressão de que alguém o observava de longe. Parou onde estava e olhou a sua volta. Próximo à esquina, divisou o que parecia ser o vulto de uma mulher destacado contra um muro branco. Firmou a vista tentando identificá-la, inutilmente. Nesse momento o porteiro percebeu o enigmático comportamento de Vicente e acercou-se para verificar o que acontecia. Vicente não era especialista em moda, muito menos um excelente fisionomista. Mesmo assim não pôde deixar de murmurar para o pobre homem a seguinte frase, cujo significado permanece obscuro até agora:

— Quem usaria um vestido desses nos dias de hoje?

A visão logo se dissipou e Vicente entrou no carro que o levaria até a sede da empresa.

Sentado em sua cadeira de espaldar alto conferia números numa planilha quando se deu conta que não conseguira ver o rosto da mulher. O que lhe pareceu inexplicável, pois o dia estava claro e eles haviam ficado frente a frente, apesar da distância. Estava imerso nessas divagações quando sua secretária veio informar que uma jovem o aguardava na recepção.

— Diga a ela para entrar.

— Ela acha melhor não – disse a secretária com um sorrisinho malicioso e voltou correndo para atender o telefone que tocava em sua mesa.

Contrariado pela interrupção, Vicente cruzou a sala a passos rápidos. Ao passar pela secretária, disparou:

— Como vou saber quem é ela?

— É a morena com vestido sépia. Não tem como errar – respondeu tampando o bocal do telefone com a mão.

Contrariado, Vicente foi até a recepção, mas fora um ou dois fornecedores habituais não havia mais ninguém. Muito menos uma jovem de vestido sépia.

— Ela não estava lá – disse para a secretária.

— Vai ver que cansou de esperar.

— E como ela era?

— Não prestei atenção. Mas lembro que estava vestindo um conjunto vintage muito elegante. Estranho sair assim, não achas?

Por conhecer seu chefe bem demais, a observação estava mais para afirmativa que pergunta.

Era estranho sim, quanto a isso Vicente não tinha dúvidas. Por fim, soterrou as apreensões sob os compromissos de sua agenda. Só voltou a pensar no assunto mais tarde, já em casa, quando não havia como voltar atrás.

Vicente tinha por hábito assistir televisão depois de jantar. Gostava de sentar na sua poltrona preferida e esquecer dos problemas do escritório maratonando séries. Por volta da meia-noite uma cena emocionante de luta entre o bem e o mal foi interrompida pelo insistente toque de uma campainha. Campainha mesmo, daquelas metálicas, como nos despertadores antigos. Verificou o celular por hábito, sabendo que o toque deveria ser diferente. Apenas confirmou que a chamada vinha de outro lugar.

O som irritante soava a intervalos regulares. Intrigado, Vicente deu uma pausa no filme e começou a circular pela sala. Foi quando seus olhos fixaram-se num antigo telefone de parede, com dial em forma de disco. Dali vinha o trinar metálico. Em sendo de fato um telefone, fazia o que fazem os telefones. A não ser por um detalhe. Era meramente decorativo. Jamais fora conectado à rede de telefonia.

Quando se deu conta disso, Vicente arrepiou da cabeça aos pés. Só decidiu atender porque deduziu que o aparelho não pararia de tocar até que alguém o atendesse. Levantou o fone e o colocou na orelha. Nada além de silêncio. Repôs o fone no gancho e constatou aliviado que havia parado de tocar.

Ao se virar para voltar à poltrona quase enfartou. A sua frente, praticamente colada ao seu rosto, estava uma linda mulher. A primeira coisa que notou foram os cabelos que caiam sobre os ombros. Ele já havia visto aquele penteado em algum lugar. Os lábios eram vermelho-sangue e a pele muito branca, pálida até. E o mais incrível, trajava um vestido sépia.

— Quem é você?

Vicente balbuciou essas palavras com dificuldade, pois estava quase mergulhando naqueles olhos negros e brilhantes que devassavam sua alma, destruindo seu juízo.

— Eu sou aquela que você encontrou ontem – respondeu a moça com ar zombeteiro.

— O que queres de mim?

Ao terminar de fazer a pergunta Vicente tinha certeza de que não queria ouvir a resposta.

— Contar-te a causa da minha morte, respondeu ela com um sorriso de gelar o coração.

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