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O Espírito da Sardenha

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O telefone tocou às nove e quarenta e cinco. A pessoa do outro lado da linha disse chamar-se Verbena, como a flor. Pelo tom da voz percebi o nervosismo, apesar do esforço em aparentar calma. Resumindo a conversa, descreveu eventos desconcertantes que presenciara e requisitou meus serviços. Eu acabara de solucionar um caso complicado e preferia fazer nada. Infelizmente a gravidade da situação pedia urgência e não podia entregar-me a esse luxo. Além disso, o calor estava insuportável no Rio de Janeiro e a demanda procedia de uma pequena cidade da região serrana do Espírito Santo. Consultei a previsão para os próximos dias e verifiquei que as temperaturas estariam amenas por lá. Entusiasmado com a perspectiva de curtir um friozinho, arejei alguns agasalhos cheirando à naftalina e os coloquei na mala. Parti na manhã seguinte, ao romper da aurora. A viagem foi tranquila, sem incidentes. Cheguei a sede do município no final da tarde. Combináramos de nos encontrar nos arre...

Família é para sempre

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Dia desses acordei mais tarde que o de costume. Era um sábado sem compromissos na agenda - fato raro que aproveitei para repor as energias dando uma esticada na cama. Entorpecido pelo sono, entrei na cozinha para colocar água para ferver, ávido por degustar um café recém coado com a calma que a tranquilidade da manhã sugeria. Ao entrar, deparei-me com meu avô sentado num mochinho, sob a luz que entrava pela vidraça, iluminando o jornal que lia com certa dificuldade. Aproximara o papel do rosto e acompanhava as linhas com o dedo, como se isso pudesse atenuar os efeitos da miopia que o atormentava. A cena seria corriqueira não fosse por um detalhe. Seu Hermann, como costumava chamá-lo, falecera há pelo menos vinte anos. Relembrando o fato percebo que nem foi isso que chamou minha atenção na hora. Primeiro pensei: — Por que ele não coloca os óculos? E em seguida: — De onde saiu esse jornal?  Ele tinha em mãos um exemplar do Correio do Povo de Porto Alegre, no formato standard - aquele...

Chorosa : encontro de almas

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Continuação do conto Chorosa : um apelo à eternidade  ( clique aqui  para ler). Tendo formulado a hipótese da separação de mãe e filha durante a exumação da primeira, precisávamos localizar elementos que confirmassem - ou refutassem - essa premissa. Recriar a cronologia dos fatos a partir de 1839 mostrou-se excessivamente difícil. Por essa razão resolvemos tomar um caminho mais fácil, partindo do lugar no qual D. Quitéria se encontrava no momento. A parte inicial do trabalho coube à Daguerra que levantou, junto à administração do cemitério, a quem pertencia o ossuário. Descobriu ser a proprietária uma figura proeminente, membro de família tradicional, admirada no meio empresarial carioca por seus variados empreendimentos e considerável fortuna. Telefonei para marcar uma entrevista e fui atendido pela secretária que, friamente, deu a entender que sua patroa não tinha tempo a perder com bobagens. Enquanto matutava formas alternativas de contornar...

Chorosa : um apelo à eternidade

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Daguerra é um homem de paz. Recebeu esse nome insólito por obra do escrivão quase surdo e de má vontade que atendeu seu pai na hora de fazer o registro. Ao perguntar como se chamaria o rebento a resposta foi: — Daguerre. Resmungando, registrou o que entendeu, ou seja, Daguerra. Teimoso, recusou-se a rasurar o assentamento, apesar das insistentes bravatas proferidas pelo velho Antônio, fotógrafo das antigas, que viu falhar seu desejo de homenagear o inventor da fotografia no nascimento de seu primogênito. Tive o prazer de conhecê-lo logo após desembarcar de mala e cuia no Rio. Como não conhecia a cidade, pareceu-me boa a ideia de participar de passeios turísticos a pé orientados por guias especializados na história da região. Uma maneira divertida de aprender e fazer amigos como Daguerra, sócio da pequena agência que organizava esse tipo de roteiro. Mantínhamos esporádicos contatos, mesmo tendo eu deixado de participar das atividades. Passados dois...

Cuidado com o cachorro

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Era dezembro. O verão aqui no Rio de Janeiro costuma ser quente, mas naquele ano o calor estava literalmente insuportável. A história que vou contar começou no primeiro domingo do Advento. Eu deixara o conforto do ar condicionado para ir à padaria da esquina comprar sorvete. Ao passar pelo muro de uma casa abandonada, notei o portão aberto e parei para dar uma espiada. Era uma antiga e maltratada residência. A despeito das marcas deixadas pelo tempo, guardava muito do esplendor original. Sem dúvida uma sobrevivente do período áureo da Tijuca, quando o bairro era povoado em sua maioria por veranistas que buscavam o clima ameno da região. Não ousei entrar, mas divisava o jardim convertido em mato alto, muito lixo espalhado e um cachorro vira-latas caramelo sentado em frente a escada que leva ao alpendre. A cena em si não diferia do esperado, entretanto a postura do animal chamou-me a atenção. Imóvel, fitava o vazio a sua frente, indiferente a tudo. Arfava com meio palmo de língua de fora...