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Sinal dos tempos

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O visor fosforescente do rádio-relógio marcava exatamente seis horas. Josimar acordara há pelo menos trinta minutos. Permanecia deitado, sentindo o leito vibrar na frequência dos veículos trafegando abaixo de sua janela. O ronco de uma motocicleta com o escapamento aberto encerrou definitivamente a sonolência que embalava os resquícios da madrugada. Pontual como sempre, o motoqueiro barulhento sinalizava o início de uma nova jornada. Rolou cuidadosamente para a beira do colchão e sentou. Bocejou tateando com os pés em busca das chinelas. Movimentava-se lenta e silenciosamente. Temia despertar Etelvina, sua esposa. Ela costumava ser irascível o dia todo. Estremunhada era pior e ele retardava propositalmente a experiência. Por uma fresta na cortina espiou através da vidraça. Nuvens pesadas obstruíam a incipiente luminosidade matutina. Estavam no inverno, mas um calorzinho fora de época fazia crer o contrário. Mantendo o ritmo calmo, passou pela porta. Fechou-a atrás de si para isolar o q...

Não corra papai

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Incidentes bizarros perturbavam os moradores de uma ruazinha arborizada da Tijuca. Tudo começara há alguns meses, mas faziam duas semanas, aproximadamente, que me chamaram. Aqui no Rio, automóveis abandonados na via pública recebem o curioso apelido de Bibelôs de Calçada. De uma hora para outra, um desses adornos criara vida própria: amanhecia com uma das janelas abaixada, os faróis piscavam e buzinadas extemporâneas soavam a qualquer hora do dia ou da noite. Não era o modelo do ano, contudo não era assim tão velho. Estava maltratado por dormir ao relento, coberto de pó, a lataria riscada, pneus murchando, mato crescendo em torno. Os vidros opacos pela sujeira bloqueavam a visão do interior. Residentes da vizinhança tentaram, sem sucesso, surpreender o responsável pelas manifestações. Desistiram, supondo tratar-se de travessuras da criançada. Conforme o tempo passava os episódios amiudavam-se. O morador da casa na frente da qual o veículo estacionara flagrou, em mais de uma ocasião...

Recém-casados

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Quem segue os causos que conto sabe que sou gaúcho e moro na Tijuca, no Rio de Janeiro. Quem não sabia, agora ficou sabendo! Próximo ao edifício onde fica meu apartamento há uma padaria, na qual sempre que posso tomo um café-com-qualquer-coisa para encerrar o expediente. Desde o caso da Festa de Aniversário fiquei conhecido por aqui e é comum alguém se aproximar pedindo conselhos ou querendo relatar suas próprias experiências. Foi o que aconteceu com um dos socorristas que trabalha no quartel de bombeiros próximo. Chegou acanhado, pediu licença para sentar. Era um moço alto, forte, curtido de sol, cuja atitude retraída não combinava com o porte altivo. Olhei resignado - prefiro bebericar meu café em silêncio -, assentindo com a cabeça. Ofereci uma xícara, que prontamente aceitou. Esqueceu de colocar açúcar, mas rodava a colher de plástico absorto em pensamentos. Finalmente tomou coragem para perguntar: — De qual parte do Rio Grande do Sul o senhor vem? — De Canoas, na grande Porto Ale...

O matador de lobisomens

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Esse causo que lhes conto é tido como verídico, embora os nomes tenham sido trocados para resguardar a identidade dos envolvidos. Foi pras bandas de Bagé, numa estância grande, próxima à fronteira com o Uruguay. Uns dizem que se passou na década de 40 do século passado, outros que foi antes. Pouco importa, porque no interior do meu Rio Grande o tempo tem uma medida diferente e as cousas demoram a se modernizar. Perdido na imensidão do pampa, próximo ao Rincão das Mulas, havia o rancho de um peão de nome Teixeira. Gaudério talhado a facão, mais grosso que dedo destroncado, mui apegado à família. Dona Nena, a esposa, e três piazotes completavam o conjunto. O primogênito respondia por Abelardo. Idolatrava o pai e queria porque queria crescer para ser um taura macanudo como ele. Teixeira tinha uns hábitos pouco convencionais, digamos assim. Era dado a fanfarronices. Por ocasião das carreiras organizadas pelo bolicheiro da vila colocava seu alazão para correr. O c...

O Espírito da Sardenha

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O telefone tocou às nove e quarenta e cinco. A pessoa do outro lado da linha disse chamar-se Verbena, como a flor. Pelo tom da voz percebi o nervosismo, apesar do esforço em aparentar calma. Resumindo a conversa, descreveu eventos desconcertantes que presenciara e requisitou meus serviços. Eu acabara de solucionar um caso complicado e preferia fazer nada. Infelizmente a gravidade da situação pedia urgência e não podia entregar-me a esse luxo. Além disso, o calor estava insuportável no Rio de Janeiro e a demanda procedia de uma pequena cidade da região serrana do Espírito Santo. Consultei a previsão para os próximos dias e verifiquei que as temperaturas estariam amenas por lá. Entusiasmado com a perspectiva de curtir um friozinho, arejei alguns agasalhos cheirando à naftalina e os coloquei na mala. Parti na manhã seguinte, ao romper da aurora. A viagem foi tranquila, sem incidentes. Cheguei a sede do município no final da tarde. Combináramos de nos encontrar nos arre...

Família é para sempre

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Dia desses acordei mais tarde que o de costume. Era um sábado sem compromissos na agenda - fato raro que aproveitei para repor as energias dando uma esticada na cama. Entorpecido pelo sono, entrei na cozinha para colocar água para ferver, ávido por degustar um café recém coado com a calma que a tranquilidade da manhã sugeria. Ao entrar, deparei-me com meu avô sentado num mochinho, sob a luz que entrava pela vidraça, iluminando o jornal que lia com certa dificuldade. Aproximara o papel do rosto e acompanhava as linhas com o dedo, como se isso pudesse atenuar os efeitos da miopia que o atormentava. A cena seria corriqueira não fosse por um detalhe. Seu Hermann, como costumava chamá-lo, falecera há pelo menos vinte anos. Relembrando o fato percebo que nem foi isso que chamou minha atenção na hora. Primeiro pensei: — Por que ele não coloca os óculos? E em seguida: — De onde saiu esse jornal?  Ele tinha em mãos um exemplar do Correio do Povo de Porto Alegre, no formato standard - aquele...