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Mostrando postagens de 2025

Benício e o falso medium

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Lembram do Benício, o ancestral maragato notabilizado pela perícia ao aplicar a Gravata Colorada nos legalistas? Pois bem, reencontrei-o. Ou melhor, ele voltou a me procurar durante uma viagem a Porto Alegre. Surgiu pilchado, lenço vermelho no pescoço, tirador de couro sobre o chiripá surrado, garruchas e adaga atravessadas na guaiaca. Continua o mesmo fanfarrão debochado de sempre. Eu voltara à cidade para cuidar do inventário de meu recém finado pai e ele sequer aparentou demonstrar interesse ou solidariedade. Foi logo pedindo favores. Dessa vez para um conhecido tão morto quanto ele. — Estás terceirizando minhas habilidades? - Indaguei magoado pela indiferença, ofendido pelo oportunismo. Respondeu com a cara lavada de costume: — Mas bah! Deixa de melindres! Comentei a respeito dos teus dons e ele pediu que intercedesse. Não me faça desfeita perante um colega! Indignava-me a desfaçatez do antepassado. Em contrapartida, alg...

Adalgisa

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Um dos meus pontos de referência afetiva no centro do Rio de Janeiro é o restaurante Verdinho da Cinelândia - de saudosa memória. Já citei o local em relato anterior assim como uma de suas ilustres figuras: Seu Roberval, o garçom que sempre nos atendia (ver Chorosa ). Uma turma de amigos autointitulada Confraria das Quartas reunia-se ali todas as quartas-feiras ao meio-dia com o propósito de comer, beber e, principalmente, jogar conversa fora. Tínhamos mesa fixa e direito a batas-fritas portuguesas no capricho. Bons tempos aqueles. Essa lembrança trouxe de arrasto outra, de um caso complicado, resolvido com fartas doses de sutileza, argúcia e uma pitada de sorte. Começou de forma prosaica durante o almoço, após alguém comentar sobre minhas habilidades paranormais. Notei que Seu Roberval suspendera o retorno à cozinha e ficara assuntando. Nada demais. Fazia isso frequentemente e não ligávamos, pois o considerávamos membro do grupo. Encerrado o repasto coube a mim qu...

Prematuro

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No final de março, após uma chuva benfazeja amenizar a secura de um verão interminável, saí para espairecer. A temperatura agradável suavizava meu permanente senso de urgência, fruto das inúmeras solicitações de ajuda, tanto de vivos quanto de mortos. Há uma praça bastante arborizada relativamente perto do local onde resido e para lá me dirigi. Considero um privilégio desfrutar desse oásis verde em meio a paisagem de asfalto e concreto. O trinar dos passarinhos, as corridas frenéticas dos cães, as risadas das crianças têm o poder de afastar de mim as sensações amargas herdadas dos eventos dolorosos que costumo tratar. Ao menos era o que eu esperava. Sentado num banco apartado do burburinho, sondava a esmo. A vinte metros divisei uma babá distraída, mexendo no celular. No carrinho a sua frente um garotinho ria e esticava os bracinhos. Não para ela. Absorta, ignorava a agitação do menino. Os gracejos eram para uma jovem que o contemplava com afeto e desampa...

Insônia

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D. Carmelina testemunhava o nascer de um novo dia, anunciado acintosamente pela claridade espraiando-se através das frestas da persiana. Assustada, a escuridão escondia-se pelos cantos enquanto ela rolava para o lado. Não buscava o sono perdido, pois este fugira há tempos. Levantou-se, vestiu o robe, seguiu para o banheiro e de lá para a cozinha. Num ato reflexo procurou a mesa posta para o café. Encontrou o tampo de fórmica coberto pelo trilho de crochê com um singelo bibelô servindo de enfeite. Aonde estava com a cabeça? Há um par de anos vivia sozinha. Essa condição inédita lhe impusera a mais desditosa das visitantes: a morte. Não a sua, obviamente, mas a de seu marido. Fora ele, por décadas, quem madrugara para cumprir duras jornadas de trabalho. Saía cedo, deixando tudo pronto para ela e os rebentos. A prática converteu-se em hábito, mantido inclusive depois da aposentadoria. Estendeu a toalha - última sobrevivente do enxoval. No armário pegou a xícara de us...