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Lei da Selva

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Inverno no Amazonas é sinônimo de chuva. E daquela feita parecia que a floresta seria alagada definitivamente, tal a quantidade de água que despencava do céu há dias. Não por acaso Firmino, um caboclo acostumado aos humores do clima amazônico, morava numa casa flutuante. Era sua forma de lidar com as constantes oscilações do nível do rio. Pressentindo a tempestade, buscara abrigo no igarapé onde se encontrava, mas até ele, que sempre fora calmo, agora se agitava num banzeiro medonho, mexido pelo peso dos pingos que despencavam céleres, se fundiam à massa líquida e o faziam aumentar perigosamente de volume.  Sentado em sua varanda, tecendo uma rede forte de malha larga, Firmino deixava as mãos trabalharem por conta própria para assuntar a paisagem em busca de algo que espantasse o tédio daquele trabalho repetitivo. Estava nessa ocupação há horas, sabendo que dificilmente algo surgiria assim do nada, naquelas condições. Contrariando suas certezas, lá pelas tantas avistou alguém reman...

A árvore dos colchões

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Faz alguns anos, fui aprovado num concurso público e precisei sair da minha cidade natal para tomar posse  no Rio de Janeiro. Morei por um ano num pequeno apartamento mobiliado em Santa Tereza para depois alugar um outro, maior, num bairro da Zona Sul - do qual prefiro omitir o nome para garantir a privacidade dos envolvidos. Eu vinha do interior do Rio Grande do Sul e não estava acostumado com a vida numa cidade grande. Demorei um pouco para assimilar vários costumes cariocas, de modo que a princípio julguei que os estranhos fatos que presenciei fossem apenas manifestações naturais de um estilo de vida diferente do meu. Explico. O apartamento da Zona Sul era relativamente próximo ao local onde trabalhava, então eu ia a pé até a repartição para fazer um pouco de exercício. No caminho havia uma praça, muito antiga, com um chafariz de ferro fundido importado da França no final do século XIX. Sempre que passava por ali encontrava alguns idosos p...

Contando ninguém acredita

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Nunca é fácil lidar com a perda de um ente querido e cada pessoa tem sua forma particular de expressar os sentimentos nesse momento singular, em que a existência se depara com a finitude. Que dizer de uma mãe que perde um filho? Ou de uma viúva que precisa lidar com a herança deixada pelo marido? E o que fazer quando somos instados a estar presentes pelo dever da solidariedade? Essa coletânea traz três contos que abordam temas delicados, mas não por isso menos importantes, com leveza e bom humor. São estórias baseadas em fatos reais, por mais incrível que pareça. Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha Transmitindo em todas as frequências Numa pequena cidade da Região Sul do País viviam Seu Hélio e Dona Maria. Eram pessoas simples, batalhadoras, que trabalhavam muito para sustentar cinco filhos com dignidade. Dentro do possível, levavam um vida tranquila, quando, inesperadamente, a cegonha avisou que viria visitá-los novamente. Levaram um tremendo susto! Estavam já com certa idade e não ...

O homem de vermelho

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Josias era um pão duro renomado. Sua fama se estendia além dos limites do bairro onde morava, tal a sofreguidão com a qual tentava amealhar fortuna. Tentava, porque além de sovina Josias era uma alma pobre em todos os sentidos. Nunca arranjara emprego por se considerar bom demais para ser funcionário de alguém. Nunca  iniciara um negócio próprio porque a palavra trabalho não fazia parte do seu vocabulário. E tinha delírios de grandeza o Josias. Em sua imaginação não havia outro tão sabido como ele próprio. Armava esquema sobre esquema para arrancar algum cobre dos incautos, sem sucesso. Quem seria ingênuo o suficiente para confiar em suas garantias? Corria atrás de quem tinha prestígio, dinheiro, ou de preferência os dois, tentando fazer amizade. Até concorreu a vereador convencido que a mamata seria farta. Concorreu, mas não se elegeu. Quem seria tolo o suficiente para acreditar em suas promessas?  Era tão ofuscado por essa falsa idei...

Sépia

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Era inverno e o dia estava lindo, com um céu azul para brigadeiro algum botar defeito. Para Vicente, que acompanhava o sepultamento de Jacinto, um amigo vitimado por um acidente, isso não estava certo. Em sua mente enterros deveriam, obrigatoriamente, ocorrer em dias nublados, de preferência com uma chuva fina a encharcar os casacos dos homens e os chapéus das mulheres. Mas enfim, fazer o quê se o tempo não queria colaborar. A cerimônia já havia terminado e algumas pessoas permaneciam conversando entre si, lamentando a perda tão precoce daquele jovem promissor. Vicente estava chateado, é claro, mas suportara bem o golpe da fatalidade. Regulava em idade com o falecido, do qual era próximo e de quem sentia muita falta. Sorriu de lado ao recordar algumas passagens impublicáveis, todas elas envolvendo rabos de saia, que vivera com o amigo. Enquanto tirava um cisco do olho reparou em algo que chamou sua atenção. Uma lápide de granito bastante antiga, na qual se destacava a fotografia de uma...

Olho por Olho

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  Vista do alto, a Floresta Amazônica parece um imenso tabuleiro verde, recortado por um emaranhado de rios e áreas alagadas. Esses mananciais são tão vitais para a manutenção da vida quanto os recursos oriundos da terra, pois é deles que os habitantes tiram seu sustento. Por isso não é de estranhar que a água ocupe lugar de destaque no imaginário das diversas raças que tentaram dominar esse reino indomável. E quem desdenha o conhecimento que emana desse saber coletivo corre o risco de se tornar vítima das circunstâncias por pura ignorância dos costumes locais. Tomemos como exemplo o caso do Caboclo Chicotada, homem de corpo e alma calejados pela vida na selva. Na cidade seria desdenhado por ser analfabeto e desconhecedor das etiquetas ditas civilizadas. No seio da mata, entretanto, é o companheiro que todos desejam ter, principalmente em momentos de aperto, graças a sabedoria natural adquirida pela experiência, convívio com os filhos da terra e incontáveis aventuras. Suas estórias...

Codicilo

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A bem da verdade preciso confessar que sempre fui uma pessoa comum. Ao contrário de outros, a natureza parece ter esquecido completamente a minha existência durante a distribuição de dons. Inteligência mediana, nenhuma aptidão para esportes, aparência simplória. Por outro lado, enquanto a genética se deleitava em me pregar essa peça, o destino tinha outros planos. E tudo começou da forma mais inocente que se possa imaginar. — Já é madrugada - resmunguei olhando o relógio na parede - é hora de parar. Foi na época da pandemia e eu estava em isolamento, em casa, há pelo menos um ano. Devido ao confinamento prolongado a percepção da passagem dos dias estava comprometida ao ponto de eu não respeitar mais os limites biológicos relativos ao dia ou a noite. Estava embaralhada ao ponto de não fazer muita diferença saber se estava claro ou escuro lá fora ou que horas seriam naquele instante. — Azar. Só mais uma e vou dormir. Fazer pesquisas aleatórias no computador era uma estranha forma de ...