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Família é para sempre

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Dia desses acordei mais tarde que o de costume. Era um sábado sem compromissos na agenda - fato raro que aproveitei para repor as energias dando uma esticada na cama. Entorpecido pelo sono, entrei na cozinha para colocar água para ferver, ávido por degustar um café recém coado com a calma que a tranquilidade da manhã sugeria. Ao entrar, deparei-me com meu avô sentado num mochinho, sob a luz que entrava pela vidraça, iluminando o jornal que lia com certa dificuldade. Aproximara o papel do rosto e acompanhava as linhas com o dedo, como se isso pudesse atenuar os efeitos da miopia que o atormentava. A cena seria corriqueira não fosse por um detalhe. Seu Hermann, como costumava chamá-lo, falecera há pelo menos vinte anos. Relembrando o fato percebo que nem foi isso que chamou minha atenção na hora. Primeiro pensei: — Por que ele não coloca os óculos? E em seguida: — De onde saiu esse jornal?  Ele tinha em mãos um exemplar do Correio do Povo de Porto Alegre, no formato standard - aquele...

Chorosa : encontro de almas

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Continuação do conto Chorosa : um apelo à eternidade  ( clique aqui  para ler). Tendo formulado a hipótese da separação de mãe e filha durante a exumação da primeira, precisávamos localizar elementos que confirmassem - ou refutassem - essa premissa. Recriar a cronologia dos fatos a partir de 1839 mostrou-se excessivamente difícil. Por essa razão resolvemos tomar um caminho mais fácil, partindo do lugar no qual D. Quitéria se encontrava no momento. A parte inicial do trabalho coube à Daguerra que levantou, junto à administração do cemitério, a quem pertencia o ossuário. Descobriu ser a proprietária uma figura proeminente, membro de família tradicional, admirada no meio empresarial carioca por seus variados empreendimentos e considerável fortuna. Telefonei para marcar uma entrevista e fui atendido pela secretária que, friamente, deu a entender que sua patroa não tinha tempo a perder com bobagens. Enquanto matutava formas alternativas de contornar...

Chorosa : um apelo à eternidade

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Daguerra é um homem de paz. Recebeu esse nome insólito por obra do escrivão quase surdo e de má vontade que atendeu seu pai na hora de fazer o registro. Ao perguntar como se chamaria o rebento a resposta foi: — Daguerre. Resmungando, registrou o que entendeu, ou seja, Daguerra. Teimoso, recusou-se a rasurar o assentamento, apesar das insistentes bravatas proferidas pelo velho Antônio, fotógrafo das antigas, que viu falhar seu desejo de homenagear o inventor da fotografia no nascimento de seu primogênito. Tive o prazer de conhecê-lo logo após desembarcar de mala e cuia no Rio. Como não conhecia a cidade, pareceu-me boa a ideia de participar de passeios turísticos a pé orientados por guias especializados na história da região. Uma maneira divertida de aprender e fazer amigos como Daguerra, sócio da pequena agência que organizava esse tipo de roteiro. Mantínhamos esporádicos contatos, mesmo tendo eu deixado de participar das atividades. Passados dois...

Cuidado com o cachorro

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Era dezembro. O verão aqui no Rio de Janeiro costuma ser quente, mas naquele ano o calor estava literalmente insuportável. A história que vou contar começou no primeiro domingo do Advento. Eu deixara o conforto do ar condicionado para ir à padaria da esquina comprar sorvete. Ao passar pelo muro de uma casa abandonada, notei o portão aberto e parei para dar uma espiada. Era uma antiga e maltratada residência. A despeito das marcas deixadas pelo tempo, guardava muito do esplendor original. Sem dúvida uma sobrevivente do período áureo da Tijuca, quando o bairro era povoado em sua maioria por veranistas que buscavam o clima ameno da região. Não ousei entrar, mas divisava o jardim convertido em mato alto, muito lixo espalhado e um cachorro vira-latas caramelo sentado em frente a escada que leva ao alpendre. A cena em si não diferia do esperado, entretanto a postura do animal chamou-me a atenção. Imóvel, fitava o vazio a sua frente, indiferente a tudo. Arfava com meio palmo de língua de fora...

Lenda urbana

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Por mais adulta e independente que seja uma pessoa, a perda de um dos genitores sempre deixa um gosto amargo de orfandade. Quando meu pai morreu eu estava longe e, a princípio, aceitei a notícia com serenidade. Senti a exata noção da perda apenas ao receber pelo correio diversos pertences pessoais do velho enviados por minha irmã, os quais lhe pareceu que seriam de meu interesse. Aberta a caixa, revelou-se uma coleção de coisas que só se encontram no Rio Grande do Sul, meu torrão natal: boina campeira, guaiaca, bombacha, faca de churrasco e um sortimento de tralhas diversas. Pedaços de lembranças que guardo até hoje. Ela aproveitou a ocasião para remeter também itens que eu havia deixado ao me mudar para o Rio de Janeiro e que agora só ocupavam espaço no apartamento de nossa mãe. Os cacarecos eram de outra espécie, adequados a uma infância bem vivida naqueles idos tempos de brincadeiras analógicas: time de botão, chimpa para o jogo de tampinhas, álbum de história natural, figurinhas de...

Seu Olavo

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Meu sogro era uma figura ímpar. Amazonense criado solto na imensidão da floresta, acabou aprisionado na cidade grande, onde enraizou-se para constituir família, sem nunca esquecer sua origem e seu passado. Falava com paixão das aventuras mirabolantes - jurava serem verdadeiras! - vividas antes de abandonar o torrão natal. Chamava-se Olavo e transcrevo da maneira mais fiel possível este relato que, jurava ele, aconteceu tal e qual está dito. Desde cedo Olavo levava uma existência solitária, envolto pelo ambiente selvagem que o circundava. Órfão de mãe, vivia com o pai na casa dos avós. Cresceu sob os cuidados de uma tia, afamada benzedeira, com quem aprendeu o que sabia a respeito das artes do sobrenatural. Talvez sob influência dela ou predisposição inata, desenvolveu a capacidade de ver e sentir coisas que aos demais passavam desapercebidas, uma habilidade que o livrou de várias agruras ao longo da vida e o meteu em outros tantos apuros. Certa feita, ainda meninote, um enorme sapo ver...

Dia confuso

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Hoje foi um dia confuso. Lembro de acordar cedo porque tinha uma entrevista de emprego. Vesti minha melhor camisa - a única que não tem os punhos puídos - e saí apressado, carregando uma pasta preta com meu currículo e outros documentos. Agora é noite e estou sozinho nesse ônibus que não sei para onde vai. —  Onde está a minha pasta? - pergunto em voz alta. O motorista não se digna a responder. Parto do princípio que ele não teria como saber. Devo tê-la deixado cair. Procuro embaixo dos bancos e nada. De joelhos no corredor, olho para cima e flagro o condutor me vigiando através do retrovisor. Fico arrepiado sem saber por quê. De volta ao assento, respiro fundo para conter a agitação que me domina. Analiso atentamente os detalhes ao redor. Nada há de especial. O carro parece novo. É um daqueles modelos que aparecem nas propagandas da prefeitura. Ainda está inteiro, mas em breve algum vândalo há de mudar isso. Esforço-me para refazer os passos que me trouxeram até aqui. Minha c...