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Mostrando postagens de 2022

Espírito de Natal

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Se não me falha a memória, faz uns quatro anos que passamos o último Natal sem incidentes. O fenômeno teve início em 2018, creio que na segunda semana de dezembro. A partir daí passou a acontecer sempre na mesma época. Começou fraco, na hora eu não reparei, ou não quis acreditar que fosse real, o que é o mais provável. Estava sentado na poltrona da sala, bebericando cerveja enquanto respondia mensagens no celular. Uma sensação desagradável tomou conta do meu peito. Sem razão aparente, olhei para a janela. Era noite, quase não se via o lado de fora. Por um instante vi o brilho fugaz de dois luzeiros. Julguei ser um gato e voltei a zapear o aparelho. Fiquei cismado com a distância entre os pontos luminosos. Lembro de pensar que devia ser um bicho enorme e que não haviam gatos daquele tamanho na vizinhança. Não era um animal, hoje sei disso. Demorou para que eu aceitasse essa simples verdade. No ano seguinte aconteceu de novo. Vi claramente um par de olhos que me vigiava da rua. Dessa vez...

Gravata colorada

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O caso de Juju (leia o conto Jardim de Infância para saber os detalhes) reteve-me em Porto Alegre além do que esperava, deixando-me com alguns compromissos atrasados e um esgotamento emocional considerável. No momento em que aquele anjo encontrou seu caminho, respirei aliviado, despedi-me da família e fui direto para o hotel. Necessitava relaxar. Enchi a banheira com água morna e fiquei ali, alheio a tudo, isolado da realidade e seus aborrecimentos.  Por isso, ao perceber o brilho fosforescente que se insinuava através da abertura da porta, gelei. Começou fraco para logo em seguida assumir uma proporção raramente vista. Sem esconder uma ponta de irritação, exclamei em alto e bom som: — Tenha a santa paciência! Não era para menos. A forte luminosidade indicava a presença de uma visita inesperada que trazia uma demanda a ser atendida, conflitando com meu desejo de fechar as malas e retornar ao Rio o mais cedo possível. Vesti o roupão apressadamente e espiei o interior do quarto, bus...

Jardim de Infância

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O Sul do Brasil costuma ter um inverno rigoroso e chuvoso. Aquela tarde cinzenta confirmava isso. A luminosidade fraca que atravessava as vidraças não era páreo para as luzes claras que iluminavam a sala do Jardim B, realçando o colorido dos desenhos expostos nas paredes, obra dos pequenos artistas que agora faziam uma algazarra fora do normal. Lucinda, a professora, observava em silêncio, incapaz de tomar uma atitude para apaziguar a turma que, excitada, se comprimia numa das janelas, acenando e chamando um nome em particular: — Juju! Vem pra dentro! Tá chovendo ... Cautelosamente ela virou o rosto de modo a enxergar o pátio. Lá fora, indiferente aos apelos de seus coleguinhas, Juju chapinhava feliz nas poças que cobriam a área de lazer da escola. Atraída pelo tumulto, Dionísia, a diretora, irrompeu à porta e perguntou antevendo a resposta: — A Juju de novo? Em silêncio, Lucinda sinalizou afirmativamente e baixou a cabeça. A diretora seguiu rapidamente para o corredor que dava acesso ...

Refeição Indigesta

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Olá, eu sou a Morte. Não se assuste! Não estou aqui por sua causa, pelo menos não nesse momento. Pode parecer estranho, mas vim fazer um apelo. Acompanho a humanidade desde que o mundo é mundo e sempre desempenhei minhas funções com zelo e galhardia. Infelizmente, de uns tempos para cá, está ficando cada vez mais penoso cumprir minha missão. Antes de mais nada, quero deixar bem claro que não tenho qualquer relação com as mazelas que assolam o plano material. Essa responsabilidade é vossa, humanos! Meu trabalho é única e exclusivamente fazer a colheita das almas desencarnadas e encaminhá-las ao seu destino na eternidade. Nem preciso dizer o quanto a quantidade assombrosa de óbitos oriundos de causas não naturais tem me sobrecarregado nos últimos séculos. Para se ter uma ideia, no início dos tempos meu gadanho durava umas quatro gerações, com folga. Agora, nem sei se consigo manter o atual até o final do ano. Tudo isso para dizer que vós, humanos, precisam parar com a matança generalizad...

A Guardadora de Lutos

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Enquanto dava os últimos retoques nos pertences da Sra. Gherta, D. Mirthes não conseguia afastar um pensamento incômodo que lhe atormentava há algum tempo. Olhou pela janela em busca de algo que a distraísse e afastasse essa sensação de aperto no peito para fora de seu corpo. Inutilmente. Em sua simplicidade, D. Mirthes não podia aceitar que essa angústia surgisse justo agora que sua vida ia tão bem como nunca havia ido até então. Nascera em uma família humilde. Desde cedo lutava contra a pobreza e sonhava em ter uma vida melhor. Não necessariamente de fartura, mas pelo menos digna. O sucesso – esse eterno pregador de peças – sempre evitara sua porta, frustrando cada uma de suas tentativas de ganhar algum dinheiro para si e para sua família. Sem estudos ou profissão, sua contribuição para o orçamento dependia de trabalhos manuais, tipo costurar para fora, fazer bolos, pintar guardanapos, essas coisas que as senhorinhas prendadas aprendiam a fazer em sua juventude. A mais recente, inusi...

A Capela : um amor escrito nas estrelas

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Segunda parte do conto A Capela - para ler a primeira parte clique aqui . Graças as informações obtidas na transcrição do diário que encontramos na fazenda de D. Zelinha, pude dar início a uma série de pesquisas que ajudaram a compreender a intrincada, e trágica, história de Akil e Lourdinha. Essa parte do trabalho foi fácil porque a vida pública de alguns dos envolvidos está disponível em sítios da Internet dedicados a biografar personagens do passado. Apesar de não citarem os jovens amantes, o conteúdo ali obtido serviu para tecer o pano de fundo que ajudou a compreender as motivações que levaram os protagonistas a assumirem seus papéis. Os pormenores de maior interesse estão registrados no manuscrito, os quais trazem esclarecimentos fundamentais sobre a cronologia dos fatos, que de outra forma jamais seriam conhecidos. Nesse sentido, temos que agradecer a tia de Lourdinha, responsável pelos últimos apontamentos, escritos após a morte da menina.  Com base no material recolhido, ...