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Mostrando postagens de 2023

Cuidado com o cachorro

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Era dezembro. O verão aqui no Rio de Janeiro costuma ser quente, mas naquele ano o calor estava literalmente insuportável. A história que vou contar começou no primeiro domingo do Advento. Eu deixara o conforto do ar condicionado para ir à padaria da esquina comprar sorvete. Ao passar pelo muro de uma casa abandonada, notei o portão aberto e parei para dar uma espiada. Era uma antiga e maltratada residência. A despeito das marcas deixadas pelo tempo, guardava muito do esplendor original. Sem dúvida uma sobrevivente do período áureo da Tijuca, quando o bairro era povoado em sua maioria por veranistas que buscavam o clima ameno da região. Não ousei entrar, mas divisava o jardim convertido em mato alto, muito lixo espalhado e um cachorro vira-latas caramelo sentado em frente a escada que leva ao alpendre. A cena em si não diferia do esperado, entretanto a postura do animal chamou-me a atenção. Imóvel, fitava o vazio a sua frente, indiferente a tudo. Arfava com meio palmo de língua de fora...

Lenda urbana

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Por mais adulta e independente que seja uma pessoa, a perda de um dos genitores sempre deixa um gosto amargo de orfandade. Quando meu pai morreu eu estava longe e, a princípio, aceitei a notícia com serenidade. Senti a exata noção da perda apenas ao receber pelo correio diversos pertences pessoais do velho enviados por minha irmã, os quais lhe pareceu que seriam de meu interesse. Aberta a caixa, revelou-se uma coleção de coisas que só se encontram no Rio Grande do Sul, meu torrão natal: boina campeira, guaiaca, bombacha, faca de churrasco e um sortimento de tralhas diversas. Pedaços de lembranças que guardo até hoje. Ela aproveitou a ocasião para remeter também itens que eu havia deixado ao me mudar para o Rio de Janeiro e que agora só ocupavam espaço no apartamento de nossa mãe. Os cacarecos eram de outra espécie, adequados a uma infância bem vivida naqueles idos tempos de brincadeiras analógicas: time de botão, chimpa para o jogo de tampinhas, álbum de história natural, figurinhas de...

Seu Olavo

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Meu sogro era uma figura ímpar. Amazonense criado solto na imensidão da floresta, acabou aprisionado na cidade grande, onde enraizou-se para constituir família, sem nunca esquecer sua origem e seu passado. Falava com paixão das aventuras mirabolantes - jurava serem verdadeiras! - vividas antes de abandonar o torrão natal. Chamava-se Olavo e transcrevo da maneira mais fiel possível este relato que, jurava ele, aconteceu tal e qual está dito. Desde cedo Olavo levava uma existência solitária, envolto pelo ambiente selvagem que o circundava. Órfão de mãe, vivia com o pai na casa dos avós. Cresceu sob os cuidados de uma tia, afamada benzedeira, com quem aprendeu o que sabia a respeito das artes do sobrenatural. Talvez sob influência dela ou predisposição inata, desenvolveu a capacidade de ver e sentir coisas que aos demais passavam desapercebidas, uma habilidade que o livrou de várias agruras ao longo da vida e o meteu em outros tantos apuros. Certa feita, ainda meninote, um enorme sapo ver...

Dia confuso

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Hoje foi um dia confuso. Lembro de acordar cedo porque tinha uma entrevista de emprego. Vesti minha melhor camisa - a única que não tem os punhos puídos - e saí apressado, carregando uma pasta preta com meu currículo e outros documentos. Agora é noite e estou sozinho nesse ônibus que não sei para onde vai. —  Onde está a minha pasta? - pergunto em voz alta. O motorista não se digna a responder. Parto do princípio que ele não teria como saber. Devo tê-la deixado cair. Procuro embaixo dos bancos e nada. De joelhos no corredor, olho para cima e flagro o condutor me vigiando através do retrovisor. Fico arrepiado sem saber por quê. De volta ao assento, respiro fundo para conter a agitação que me domina. Analiso atentamente os detalhes ao redor. Nada há de especial. O carro parece novo. É um daqueles modelos que aparecem nas propagandas da prefeitura. Ainda está inteiro, mas em breve algum vândalo há de mudar isso. Esforço-me para refazer os passos que me trouxeram até aqui. Minha c...

Uma vida passando a limpo

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Era sexta-feira, final de outono. Estava tranquilo na minha poltrona, curtindo as luzes da tarde que se infiltravam entre as persianas da janela quando o telefone tocou. A semana fora relativamente calma e já não esperava ser solicitado aquela hora. Meus clientes preferem ligar de manhã cedo ou no início da noite, horários em que acordam dos pesadelos ou se preparam para enfrentá-los. Seja como for, o toque insistente do celular quebrou a modorra e trouxe-me de volta à realidade. A julgar pela agitação da pessoa do outro lado da linha, o assunto era de natureza singular. Um mistério que precisava ser desvendado antes que o levasse a loucura. Pedi que se acalmasse e fornecesse detalhes. Pelo que entendi era outro caso de manifestação sobrenatural, gerando desconforto no mundo dos vivos. O detalhe é que eu moro no Rio de Janeiro e o solicitante numa cidadezinha em Minas Gerais. Apesar disso, insistia para que eu o atendesse imediatamente. Como se tratava de uma viagem de seis horas - não...

A última sinfonia

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Era tarde. A noite de gala convertera-se num desastre. Sentado em uma velha cadeira depositada no corredor que leva aos camarins do subsolo, Jacinto coçava lentamente a canela, numa débil tentativa de amenizar as dores que o afligiam. Uma proveniente da botinada desferida por seu companheiro de partitura, a outra da mágoa que existia em sua alma. As luzes iam-se apagando aos poucos, assim como a esperança de Jacinto de um dia tornar-se o primeiro violino da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Tudo porque, horas antes, ocorrera um terrível mal-entendido. Tocavam Vivaldi. As Quatro Estações para ser exato. A performance estava perfeita até chegarem no Outono, naquela parte em que quase todos os instrumentos silenciam para dar ênfase ao solo do violino. Pois bem, o solista, compenetrado, deu início a uma execução primorosa. Para espanto de todos, Jacinto, ao invés de aguardar o momento previsto para o seu naipe de cordas, ergueu-se e, c...

Atalaia

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Esta é uma obra de ficção baseada em eventos históricos, concebida como forma de homenagear a cidade do Rio de Janeiro no mês do seu aniversário. O sol nasce mais uma vez sobre a Vila de São Sebastião do Rio de Janeiro. Já perdi a conta dos dias e noites que fiquei de vigia sobre esse monte, velando pelas almas que se espalham a perder de vista. Essa fortaleza – a da Conceição – onde agora me encontro, foi erguida em função dos acontecimentos terríveis que afligiram essa freguesia no Ano da Graça de Nosso Senhor de 1711. — Casa arrombada, trancas à porta, não é o que diz a voz do povo? Se tivesse sido construída ao menos um ano antes tudo teria sido diferente e tantas vidas poderiam ter sido poupadas. Como a de João Antônio, meu pai. Éramos em cinco. Ele, minha mãe, duas irmãs e esse que vos fala. Vivia-se bem, com as rendas que o pequeno comércio da família produzia. Morávamos na Rua da Quitanda, próximo ao cruzamento que fazia com a Rua do Gadelha, num sobrado erguido a muito custo e...